INFERNO A PRAZO
Posted: segunda-feira, 9 de dezembro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: consumismo, contos
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Ele não aguentava mais ver o
apartamento tomado por bugigangas que nunca seriam usadas. Cada dia ali dentro
era um martírio e, sem exageros, aquela desordem sintetizava como estava o seu
casamento. Ele não entendia como sua mulher havia chegado ao ponto de ter se
apegado tanto àquela montanha de objetos inúteis e de reverter toda e qualquer
frustração em sacolas e faturas do cartão de crédito que só eram quitadas com o
13º salário.
A
calamidade do lugar era tamanha que ele sequer conseguia chamar os pais para um
almoço de domingo ou os amigos para tomarem uma cerveja enquanto passava um
jogo na TV. A coisa só não era pior porque ela não descontava frustrações na
aquisição de animais - "isso
aqui viraria um canil", pensava desolado. Ela tivera fases: na atlética,
ela salvara a loja de aparelhos para ginástica da falência e inutilizara o
quarto que seria do filho que nunca veio. Na de livros, o sebo da esquina tinha
de renovar o estoque diariamente e o acervo (se é que pode ser chamado assim)
ia de J.K. Rowling a livros de autoajuda. Contraditoriamente, um dos livros era
algo como "Dez passos para livrar-se do consumismo". É melhor nem
falar nada sobre as outras fases porque o assunto seria sobre todos os setores
de uma loja de departamento.
Aquele dia
era a sua última esperança de fazer algum programa que não se resumisse a
compras. Ele não pensou duas vezes: pegou uma cesta, uma toalha que mais
parecia a camisa da Croácia, algumas frutas, pães e um bom vinho chileno, virou
para a mulher e disse: "vamos fazer um piquenique". "Vamos
passar no mercado, né?", perguntou a mulher, já fazendo planos para
comprar algum produto inútil. "Nem fodendo, amor", retrucou, sem
conseguir esconder a frustração. Mesmo assim, eles foram.
O plano dele era fazer uma
rota alternativa, sem passar por perto de nenhum shopping, loja ou algo do
gênero. Aquela seria uma missão das mais difíceis, mas ele daria conta. Ou
achava isso, pelo menos. Mas ele cometeu um erro mortal: confiou no GPS e, num
descuido, entrou em uma rua pouco conhecida que dava de cara com o shopping
center próximo à sua casa. "Amor, quero entrar! Preciso fazer compras de
Natal!", dizia ela, histérica e euforicamente. "Quero entrar! Quero
entrar!", começava a gritar.
Ele não conseguia esconder
a desolação e algumas lágrimas furtivas escaparam de seus olhos - parecia algo
insano para qualquer pessoa, mas aquilo corroía sua alma e sua paz de espírito
dia após dia. E ela, tal qual um urubu no lixão, nem reparou na cara de
desespero de seu parceiro.
Era impossível andar mais
de cem metros sem entrar numa loja. Cada visita era traduzida em sacolas e mais
sacolas: sapatos, vestidos, capas para smartphone, bolsas e até mesmo uma caixa
de lápis de 36 cores estavam nas mãos dele (nem fodendo ela seguraria uma
sacola, é claro). Enquanto ela se comportava tal qual uma criança uma loja de
brinquedos, o refrão de "Realismo Convincente", do Mombojó, martelava
em sua cabeça: "eu preciso sair daqui, eu preciso parar de mentir, eu
preciso salvar o mundo mesmo que não ganhe nada com isso, não". Estava
foda viver. Com ela, em especial. E ele estava decidido em pedir o divórcio
logo que eles chegassem ao apartamento (ou depósito, como preferirem).
Enquanto ele estava perdido
em pensamentos, ela começou a arrastá-lo justamente para a loja mais
movimentada daquele shopping. "Vamos, amor!", ela falava.
"Chega! Não vou entrar nessa porra de loja! Cansei de ser cúmplice da sua
loucura. Não dá mais!", gritava, enquanto tentava separar sua mão da dela.
Claro, isso chamou a atenção de quem estava ao redor deles. Após mais algumas
trocas de acusações, ele, em um ato de desespero, saiu correndo e pulou grade
abaixo. Seu corpo levou dez segundos para ir do quarto andar ao chão e causar
impacto oco, porém brutal. Ele comprara sua liberdade daquele mar de
inutilidade. Para completar, à vista.