INFERNO A PRAZO

Posted: segunda-feira, 9 de dezembro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: ,
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Ele não aguentava mais ver o apartamento tomado por bugigangas que nunca seriam usadas. Cada dia ali dentro era um martírio e, sem exageros, aquela desordem sintetizava como estava o seu casamento. Ele não entendia como sua mulher havia chegado ao ponto de ter se apegado tanto àquela montanha de objetos inúteis e de reverter toda e qualquer frustração em sacolas e faturas do cartão de crédito que só eram quitadas com o 13º salário. 

A calamidade do lugar era tamanha que ele sequer conseguia chamar os pais para um almoço de domingo ou os amigos para tomarem uma cerveja enquanto passava um jogo na TV. A coisa só não era pior porque ela não descontava frustrações na aquisição de animais - "isso aqui viraria um canil", pensava desolado. Ela tivera fases: na atlética, ela salvara a loja de aparelhos para ginástica da falência e inutilizara o quarto que seria do filho que nunca veio. Na de livros, o sebo da esquina tinha de renovar o estoque diariamente e o acervo (se é que pode ser chamado assim) ia de J.K. Rowling a livros de autoajuda. Contraditoriamente, um dos livros era algo como "Dez passos para livrar-se do consumismo". É melhor nem falar nada sobre as outras fases porque o assunto seria sobre todos os setores de uma loja de departamento.

Aquele dia era a sua última esperança de fazer algum programa que não se resumisse a compras. Ele não pensou duas vezes: pegou uma cesta, uma toalha que mais parecia a camisa da Croácia, algumas frutas, pães e um bom vinho chileno, virou para a mulher e disse: "vamos fazer um piquenique". "Vamos passar no mercado, né?", perguntou a mulher, já fazendo planos para comprar algum produto inútil. "Nem fodendo, amor", retrucou, sem conseguir esconder a frustração. Mesmo assim, eles foram.

O plano dele era fazer uma rota alternativa, sem passar por perto de nenhum shopping, loja ou algo do gênero. Aquela seria uma missão das mais difíceis, mas ele daria conta. Ou achava isso, pelo menos. Mas ele cometeu um erro mortal: confiou no GPS e, num descuido, entrou em uma rua pouco conhecida que dava de cara com o shopping center próximo à sua casa. "Amor, quero entrar! Preciso fazer compras de Natal!", dizia ela, histérica e euforicamente. "Quero entrar! Quero entrar!", começava a gritar.

Ele não conseguia esconder a desolação e algumas lágrimas furtivas escaparam de seus olhos - parecia algo insano para qualquer pessoa, mas aquilo corroía sua alma e sua paz de espírito dia após dia. E ela, tal qual um urubu no lixão, nem reparou na cara de desespero de seu parceiro.

Era impossível andar mais de cem metros sem entrar numa loja. Cada visita era traduzida em sacolas e mais sacolas: sapatos, vestidos, capas para smartphone, bolsas e até mesmo uma caixa de lápis de 36 cores estavam nas mãos dele (nem fodendo ela seguraria uma sacola, é claro). Enquanto ela se comportava tal qual uma criança uma loja de brinquedos, o refrão de "Realismo Convincente", do Mombojó, martelava em sua cabeça: "eu preciso sair daqui, eu preciso parar de mentir, eu preciso salvar o mundo mesmo que não ganhe nada com isso, não". Estava foda viver. Com ela, em especial. E ele estava decidido em pedir o divórcio logo que eles chegassem ao apartamento (ou depósito, como preferirem).

Enquanto ele estava perdido em pensamentos, ela começou a arrastá-lo justamente para a loja mais movimentada daquele shopping. "Vamos, amor!", ela falava. "Chega! Não vou entrar nessa porra de loja! Cansei de ser cúmplice da sua loucura. Não dá mais!", gritava, enquanto tentava separar sua mão da dela. Claro, isso chamou a atenção de quem estava ao redor deles. Após mais algumas trocas de acusações, ele, em um ato de desespero, saiu correndo e pulou grade abaixo. Seu corpo levou dez segundos para ir do quarto andar ao chão e causar impacto oco, porém brutal. Ele comprara sua liberdade daquele mar de inutilidade. Para completar, à vista.


CORRUPÇÃO PRIVADA

Posted: domingo, 8 de dezembro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Beth e Carlos estavam namorando há sete meses e, sabe-se lá por quê, ela ficava ainda mais apaixonada por ele dia após dia. Por outro lado, ele a via apenas como uma foda fixa, nada além do que isso. Tanto que, às escondidas, Carlos traía Beth na primeira oportunidade que encontrava. Mesmo com os amigos alertando sobre Carlos, Beth não dava a mínima. Afinal, ele era tão legal com ela, eles se entendiam tão bem na cama e ele a tratava tão bem, que nada parecia fazer sentido. "Isso tudo é inveja! Só porque estou feliz...", pensava e dizia para si própria.

Ela estava tão cega e encantada por Carlos, mas tão encantada, que toparia fazer qualquer coisa para agradá-lo. E, ao perceber que tinha Beth na palma da sua mão, ele não pensou duas vezes e fez uma proposta para lá de indecente: gravar os dois transando. "Ver você num vídeo é excitante, amor", disse, sem esconder o ar canalha. Beth até estranhou no início, mas se era para agradá-lo, por que não? Mesmo com medo, que não conseguia identificar, ela foi até a casa de Carlos, ajudou no enquadramento da câmera e superou a inibição inicial no vídeo: oral, posições variadas e gemidos estavam todos ali, gravados. Mas Beth não imaginava o que poderia acontecer dali em diante.

Dias depois, Carlos encaminhou o vídeo para um brother no WhatsApp. "Dá uma olhada na performance da gata", enviou segundos antes do vídeo. Daí, em questão de horas, meio mundo estava assistindo ao já famigerado vídeo. Chegaram a postar no YouTube, mas fora retirado do ar algumas horas depois por violar regras de uso e o caralho a quatro. O mundo de Beth estava de ponta-cabeça. Ou melhor: tão destruído como uma cidade dizimada pela guerrilha civil.

Os dias seguintes foram devastadores. Seu perfil no Facebook estava inundado de postagens de desconhecidos, que se resumiam a frases como "Se fode aí, sua puta!", "Vadia de merda!" e daí para baixo. Os pais estavam prestes a expulsá-la de casa e os amigos, então, viraram as costas. "Até parece que vou andar com você, uma rampeira de quinta categoria... Vai queimar o meu filme, isso sim", disse sua até então melhor amiga, em uma ligação, curta, grossa e nada cortês. O golpe de misericórdia veio dias depois, como uma mensagem fria e sem sentimentalismo algum no WhatsApp: "não namoro com putas. Vazei. Se fode aí". Sim, Carlos, o cara que a convenceu a gravar o vídeo que fodera com sua vida, tirou o dele da reta e acabou com o que parecia ser um conto de fadas até alguns dias antes.

A vida não parecia fazer mais sentido algum. Ela queria sumir, desaparecer e morrer. E a saída que ela encontrou começou com o seguinte e-mail à mãe:

"Mãe,

Me perdoe. Não quis te envergonhar, menos ainda ao pai. Tudo o que quis foi agradar ao Carlos. Ele insistiu tanto para gravar aquele vídeo... Não imaginava que ele mostraria para outras pessoas.

Haja o que houver, saiba que te amo.

Amor,

Beth."

Em seguida, a janela de seu quarto, no sétimo andar de um condomínio de alto padrão em um bairro nobre, parecia ser a única saída para reencontrar a paz.

Carlos, até então ileso de tudo o que fizera com sua namorada, sentiu remorso e culpa quando soube que Beth havia cometido suicídio. De certo modo, ele a havia matado e, com ela, uma parte de si que ele até então desconhecia.

METAMORFOSE AMBULANTE

Posted: segunda-feira, 11 de novembro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Nada parecia fazer sentido na porra da vida dele. Era como se sua vida fosse um grande quebra-cabeça cuja última peça tivesse propositalmente destruída por quem o jogou no mundo. Ele simplesmente tinha dificuldade para relacionar-se com qualquer pessoa, até mesmo com quem mais amava. Era como se ele fosse um beatnik condenado a passar uma temporada em uma repartição pública. Ele era um outsider até mesmo entre outros outsiders desde que se entendia por gente. Era como se ele tivesse virado Gregor Samsa, mas ninguém lhe desse a mínima.

Seu olhar era distante e triste, como se fosse o de uma criança olhando longe à espera dos pais, mesmo sabendo que eles estavam mortos e nunca apareceriam para buscá-lo. Ele aparentava ser arrogante, antissocial e blasé, e era assim como ele queria ser visto por todos. Mas sua postura autossuficiente era apenas uma armadura para não deixar seu lado vulnerável e inseguro à mostra. Por trás de sua expressão e sua postura indiferente e alheia a tudo e a todos vivia alguém que, se não se controlasse, choraria a cada cinco minutos – ele ainda tentava se fazer de forte, mas vez ou outra chorava às escondidas. Chorava de desespero, impotência, insignificância e falta de perspectiva de dias melhores. Ele se odiava por isso: não se conformava com sua fraqueza.

Amores? Bom, eles costumavam durar apenas uma noite e não raras vezes alguns contos de réis. Ele não conseguia se entregar, simples assim. Tudo por causa de uma dessas paixões juvenis, fugazes, intensas e voláteis, em que, no fim, sua namorada à época o trocou pela versão pós-moderna de um figurante de “Juventude Transviada”. Aquilo doeu ao ponto de ele ter pensado em tudo, até mesmo em jogar-se na frente de um ônibus, mas ele não tinha coragem de fazê-lo. De tão dolorosa, aquela experiência o fez perder qualquer tipo de sentimento nobre em relação a qualquer pessoa. Ele tampouco nutria ódio por ninguém, mas tudo o que ele sentia – ou melhor: não sentia – era indiferença. Aquilo ainda doía como se um verme roesse suas fibras. Era como se ele morresse em vida, dia após dia, de forma lenta e sem esperança alguma.

Por mais contraditório que possa parecer, quando ele tentava provar para si próprio que ainda estava vivo, tudo era hiperbólico demais. Ele ria demais. Ele falava demais. Ele bebia demais. Mas ele não se sentia demais. Era como se ele fosse um rastilho de pólvora que levava poucos segundos para explodir e, segundo após a hecatombe, voltasse à inércia. Ele era a antítese em pessoa: apatia e paixão; ying e yang; Senna e Prost; Mick e Keith; Jekyll e Hyde. Nem mesmo Freud conseguiria explicar o que se passava em sua cabeça.

Tudo o que ele queria era sumir. Ele estava cansado de ver as pessoas na sala de jantar ocupadas apenas em nascer e morrer, de ver aquele grande panis et circenses virar modus operandi, de viver em um mundo onde ele era desajustado vitalício e onde até mesmo os demais desajustados o vissem como um corpo estranho. Ele não suportava mais ouvir aquelas risadas plastificadas e falsificadas na mesa do bar, sendo que horas depois tudo remeteria à melancolia. Ele queria a mais sincera loucura em detrimento à assepsia da normalidade imposta por convenções sociais.

Tudo o que ele precisava era de uma hora e vez, que vieram sem aviso prévio e sem bater à porta, mas simplesmente metendo o pé nela. Como um marido que diz à mulher que vai comprar um cigarro, mas não volta, ele arrumou sua mochila, pegou o dinheiro que lhe restara de uma noitada com a puta que abara virando sua fuck friend e ouvinte, botou o pé na estrada, partiu e nunca mais voltou. O mundo era grande demais e ele precisava explorá-lo de ponta a ponta.

ZERO ABSOLUTO

Posted: domingo, 6 de outubro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Noite de frio em São Paulo. O vento está gélido e cortante e as ruas, beirando o desértico. As poucas pessoas que se atreveram a sair de casa pareciam ser muito mais cidadãs de Edimburgo do que de São Paulo. Para completar, a garoa fina tornava o clima ainda mais insuportável. Zé, que fazia das calçadas da Mooca o seu lar, tentava encontrar forças para aguentar aquele frio lancinante. Nem o cobertor Parahyba parecia aliviar o frio na espinha, pernas, braços e alma.

Naquela noite, depois de muito tempo, ele finalmente havia voltado a sentir-se alguém, de fato. Por causa do frio, é verdade. Ele havia perdido o costume de pensar, assim como perdera o hábito de falar. Quem o visse poderia até compará-lo com Fabiano, aquele de "Vidas Secas", por causa do vocabulário quase inexistente. Para não dizer que ele não conseguia articular palavras, ele conseguia dizer o bastante pedir uns trocados, que seriam revertidos em aguardente. A única refeição que ele fazia no dia era o sopão entregue no fim do dia por um casal de idosos abnegados.

Nem ele mesmo sabia o motivo, mas naquela noite os pensamentos voltaram a fazer seu cérebro ficar a mil, como nos tempos em que ele trabalhava como advogado. "Madalena", ele balbuciava, apesar do maxilar tremendo por causa do frio. Era por causa de Madalena que sua vida e sua mente viraram pelo avesso. Ele a amou muito mais do que a si próprio por sete anos, somando um ano em que ficaram enrolados, outro ano de namoro, dois de noivado e os três em que ficaram casados. Ele não conseguia entender por que ela o trocou por seu melhor amigo - logo ele, a quem ele considerava como um irmão. Aquilo doeu tanto, mas tanto, que ele largou o emprego, saiu de casa só com a roupa do corpo e foi parar nas ruas. Foi naquele momento em que José Luiz virou Zé e fez o seu escritório nas calçadas e embaixo da ponte.

Uma lágrima furtiva rolou enquanto ele se lembrava de Madalena e da sua vida até aquela hora e vez que nem Guimarães Rosa conseguiria criar. Nem a cachaça o ajudava mais a esquecer-se dela e do frio. Do nada, os pensamentos ficavam mais lentos, assim como a respiração. Pouco a pouco, enquanto tentava ficar em posição fetal, abaixo do cobertor, ele deixava de sentir as mãos e os pés, e a dormência dominava paulatinamente o seu corpo por completo. A visão, bem aos poucos, ia ficando turva e escura. E o coração, já endurecido, foi ficando cada vez mais lento e mais gelado como o clima naquela noite.

PENSAMENTOS VISCERAIS

Posted: sexta-feira, 4 de outubro de 2013 by ajeugenio in Marcadores:
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Dezenove horas, horário de Brasília. Fodam-se “A Voz do Brasil” e a merda da rotina. Foda-se a gravata que metafórica e literalmente o sufocava. Foda-se o All Star furado que, juntamente com o jeans confortável, mas desbotado, destoava do conjunto formado pela mesma gravata, camisa e blazer. Fodam-se aqueles rostos apáticos no bar, como os de personagens de “Admirável Mundo Novo” embalados pelo soma entorpecente de cada dia. Foda-se o VT do jogo da Premier League – “futebol para coxinha e inglês ver”, pensava. Fodam-se aquelas risadas falsas ou embaladas por cerveja, que na verdade era um pouco de cevada com milho fermentado. Foda-se esse som ambiente mela-cueca e essa merda de vida também. Fodam-se até mesmo os seus amigos, que levavam vidas felizes ao lado das esposas e dos filhos, que só davam dores de cabeça quando choravam no meio da madrugada.

Falando em casamento, ele tentava entender o que dera errado com o seu, no qual após três anos de muitos baixos e um ou outro alto, fora por água abaixo. Entre um e outro copo solitário de cerveja e um cigarro, ele tentava ligar os pontos e entender em que ponto tudo começou a desandar. Ele ainda a amava, mas o seu orgulho e sua insegurança travestida de prepotência o impediam de voltar para a sua ex.

Mesmo inconscientemente, ele sabia que isso havia arruinado tudo e o fizera abandoná-la. Ele preferia rejeitar a ser rejeitado e, por temer ser abandonado pela mulher quem ele amava, ele a deixou após a transa mais visceral, raivosa e intensa que eles tiveram. Ele estava com vontade de chorar copiosamente, mas desde garoto aprendera a não deixar a porra de uma lágrima rolar na frente de ninguém. “E nunca ouse chorar após beber. Não há nada pior do que a porra de alguém bêbado chorando”. Aquela frase, dita por seu pai quando ele era apenas um garoto que começava a conhecer a vida, ecoava em sua mente como uma voz ente as paredes de uma caverna.

Enquanto sua mente estava absorta em pensamentos e confusões, ele cogitou ligar para sua ex-mulher, mas o orgulho e o medo de ela desligar a ligação na sua cara o fizeram desistir. Sua introspecção e até mesmo a timidez, que eram bem disfarçadas por ele, também o impediram de discar os números que insistiam em continuar na porra da mente dele. “Foda-se ela também”, pensou alto. Ou melhor: falou sem perceber. E, sem perceber também, chamou a atenção da garçonete, que lavava alguns copos do outro lado do balcão. “Que horror, moço! Por que tanta raiva?”, indagou, ainda espantada com o que poderia ser confundido com um acesso de Tourette. “Foi mal aí. Pensei na minha ex-mulher e fiquei um pouco irritado”, respondeu, tentando desconversar e praticar a introspecção. “A vida tem dessas coisas, mas bola para frente. Inês é morta, amigo”, replicou a garçonete.

“Caralho! Não é todo dia que uma garçonete cita Camões. E olha que nem tenho saco pra Camões”, ele pensou. Essa foi a deixa para que reparasse com mais calma na garçonete: apesar dos cabelos presos e da aparente austeridade, seu sorriso era algo entre tímido e malicioso. Seu olhar, apesar de baixo, era penetrante quando ela erguia a cabeça. Mesmo com o avental, dava para reparar que seu corpo era bem torneado, e seus seios, apesar de não serem grandes, eram honestos e facilmente pegáveis. Tá, ela notou que ele não tirava os olhos dela, deu aquela risadinha clássica de quem sabe de que há segundas intenções no ar e perguntou, como quem não quer nada – mas queria – para o quê ele estava olhando. “Nada, não. Estava perdido em pensamentos, saca?”, disfarçou, mas sem convencer sequer a ele mesmo.

Fingindo que não havia sacado nada, a garçonete continuou conversando despretensiosamente com ele e aproveitou para trazer mais uma garrafa de cerveja e começou a puxar papo com ele. “Qual o seu nome? E o que faz da vida além de reclamar?”, perguntou. “Bernardo, jornalista e alguém não muito sociável”, respondeu, tentando manter a postura blasé de sempre. “E o seu nome? Por que faz tantas perguntas?” “Lara, estudante de comunicação na parte da manhã e garçonete à noite, muito prazer”, e foi atender aos outros clientes no bar.

Assim foi até o último e indesejado cliente sair dali e, após isso, eles caminharam e conversaram mais até chegarem a outro bar. Lara saiu do sul para estudar na USP, mas para não depender da grana dos pais, começou a trabalhar como hostess em um restaurante na Vila Olímpia, mas se cansou dali. Foi aí quando ela passou a trabalhar como garçonete. Conforme mais ela falava sobre sua vida, frustrações amorosas e expectativas, como um estágio numa editora ao qual ela se candidatou, mas sem dar detalhes, mais Bernardo ficava envolvido por ela. O golpe de misericórdia foi ela dizer que não imaginava sua vida sem Kerouac e Bukowski. Daí, foi questão de tempo para eles ficarem e, dos amassos na rua às preliminares no apê de Lara, a duas quadras dali, foi um pulo. “Em questão de horas eu deixo de reclamar da merda do meu dia e recebo o melhor boquete da minha vida”, ele pensava enquanto suas pernas estavam bambas e puxava os cabelos dela.

Tudo o que ele queria era agarrá-la, chupá-la e penetrá-la com tanta intensidade, mas tanta intensidade, que até Ron Jeremy ficaria com inveja. A vibe entre os dois estava visceral ao ponto de ela gemer como se fosse a última transa da vida dela e puxá-lo para dentro de si – isso sem contar as unhas cravadas nas costas dele. Ele queria gozar e se esquecer dentro dela. Entre uma gozada e outra, foram quase duas horas de sexo intenso. Lara teve um orgasmo, o que não acontecia há tempos. Após dormirem abraçados, eles transaram sob o chuveiro e não pareciam mais querer largar um do outro.

Bernardo teve de ir embora por causa do plantão que pegaria naquele dia, mas foi difícil deixar Lara, mesmo por algum tempo. Ele não conseguia concentrar-se no trabalho, mas já não pensava mais na ex-mulher. Por mais que ele tivesse ficado com outras pessoas após o divórcio, nenhuma mexeu tanto com ele como Lara. Mal ele poderia imaginar que, uma semana depois, seria contratada uma estagiária para o núcleo em que ele trabalhava. Menos ainda que a estagiária seria ela.

DOSES DE ADRENALINA

Posted: terça-feira, 1 de outubro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: , , , ,
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Precisava esquecer-me da Lia, uma ex-date de um tempo atrás, de qualquer maneira. Logo eu, que sempre fui blasé e não me importava com muito mais do que uma noite com uma mulher - vá lá, um ou outro remember, se a vibe fosse foda -, fui ficar atraído por ela. Dia da caça, outro do caçador, dizem. Pior foi vê-la na noite anterior com outro cara. Aquilo doeu e, pior, não foi por orgulho. Sabe-se lá o que fui ver nela. Se tem algo na vida que me deixa puto, isso é sentir-me vulnerável. Não sou machista e apoio totalmente o feminismo - não o extremismo, quero deixar claro -, mas faço de tudo para não me envolver com ninguém, simples assim.

Estava vagando sem rumo, procurando por um bar e, com um pouco de sorte, uma boa companhia para passar a noite. Precisava esquecê-la de qualquer maneira. Estava nessa vibe quando encontrei o Beto, brotherzaço meu de longa data. Ele estava sem rumo também. Só não na mesma vibe que a minha porque ele é o típico malandro: o cara manja como poucos a arte de não sentir nada por ninguém - se muito, pela mãe. "Cara, tô na merda e não sei por que caralhos não consigo tirar aquela mina da cabeça", confidenciei, com ar derrotado. "Merda acontece, irmão. Bora beber e já era", ele respondeu de bate-pronto. Era só desabafar um pouco entre umas e outras, cada um encontrar uma mina para passar a noite e já era. Se nada virasse, o Casarão (ou "Boate Azul", como batizamos a digna - ops - casa) seria o destino do fim da noite. Aquilo era o recurso desesperado, mas melhor aquilo do que terminar na mão.

Assim a noite ia, entre uma garrafa de cerveja e outra, intermediados por altas risadas, canalhices em doses cavalares e olhadas ao melhor estilo Pereio para as mulheres no bar. E os alvos já estavam devidamente escolhidos, mas aquela velha historia de que o peixe periga morrer pela boca - ou melhor, pelo olho e por pensar com a outra cabeça -, ela sempre vem à tona. Ao chegar no balcão, vejo a perfeição - ou convite à roubada, se preferir - em pessoa: sorriso de quem pede para gozar na cara, olhar de quem quer te dar, corpo escultural, peitos proporcionais, com o copo vazio e ainda estava sozinha. O que qualquer homem à deriva faz? Enche o copo, simples assim. Talvez Pedro tenha gritado bem ao fundo que era uma cilada, mas Bino - ops: eu - estava pouco se fodendo àquela merda toda. Eu era todo ouvidos, olhos e pau para ela, nada mais. Comecei a puxar papo, conversar e já estava aproveitadndo o barulho ambiente como pretexto para mandar aquele papinho mole e canalha ao pé do ouvido. Mas se tem algo que acontece na minha vida, isso é merda. Ela estava sozinha era o caralho: o namorado dela havia ido ao banheiro e voltou bem quando o papo estava para lá de desenvolvido - "por que caralhos ela não me cortou na hora se ela estava acompanhada, porra?", pensei. Para foder com a merda toda, o cara parecia ser segurança de baile funk na minha quebrada. Estava fodido e não parecia nada para servir com o álibi.

Qual saída que qualquer cara metido a malandro toma? Socializa com o "sócio". Encher o copo e começar a conversar com o cara, além de inventar uma desculpa qualquer - "Ela estava sozinha e estava fazendo companhia, sabe como é" - era a saída de emergência. Mas a resposta do cara foi, no mínimo, para fazer qualquer um sair correndo: "Sou campeão paulista de caratê, cara", ele mandou na lata. Por fora, o meu lado cara de pau e a minha aparente indiferença etílica pareciam transmitir sensação de controle, mas por dentro, fera, estava todo cagado de medo [metaforicamente falando, é claro]. Nesse meio tempo, o Beto, estranhando a demora para pegar uma simples garrafa de cerveja, colou no balcão para ver o que estava acontecendo e, claro, assustou-se com o que viu. "Entendi todo o lance e o que se passou na sua cabeça, mas estamos fodidos". É, pelo jeito, estávamos, sim.

Segundo ato: o "sócio", após mostrar fotos de lutas, ligou o foda-se para a breja e partiu para aquela bebida alemã cujo nome é impronunciável após a segunda dose. "Era a bebida preferida do Hitler", emendou. E não é que o puto colocou aquela delícia em forma de mulher para contar toda a porra da história da Jaggerm...foda-se a merda do nome?! Mesmo no modo "mayday! mayday! mayday!", só conseguia ver os lábios, os seios e todo o resto em slow motion - juízo para quê, não? Para completar, o "sócio" mandou a seguinte, após a aula sobre o lado alcoólico da II Guerra Mundial: ele a conheceu dançando no queijo do Love Story. "Ela é carente e por isso sorriu quando disse que aquele lugar, naquela noite, só valia a pena por causa dela", pensei, tentando ligar os pontos. E ele devia ser da turma dos Balotellis, daqueles que apostam a namorada no pôquer, por falar aquilo. Mas qualquer tipo de raciocínio foi embora com o último gole de cerveja quando ele chamou todo mundo para fora. "Vai dar merda essa porra aí", foi o que pensei na hora. Creio que o Beto pensou o mesmo.

O clima continuava amistoso, mas a tensão estava tão presente no ar quanto as minhas pernas tremendo - de medo - sob as calças. Correr não estava nos meus planos e, enquanto pensava em uma alternativa, as garrafas no chão começavam a ficar mais atraentes. Já estava começando a considerar a reatar com a religião e prometer passar um ano sem frequentar o Casarão, beber, ir ao templo de bicicleta, sei lá. E parece que as minhas pseudopreces foram atendidas: em questão de minutos, o cara, já falando mole e com jeito de quem ia brigar com o primeiro que visse, decidiu descer o vale com a mina. Aliviado, ainda tive tempo de dar a última conferida.

Segundos depois, eu e Beto nos entreolhamos aliviados e, do nada, emendei: "Irmão, acho que alguém lá em cima vai pra caralho com a nossa cara". "Pra caralho, irmão", ele completou. Corpos devidamente fechados e copos igualmente cheios, voltamos ao plano A. Pelo menos, ali, não haveria nenhum risco de espancamento e a briga foi bem mais agradável no fim das contas. E quanto à Lia, ela já havia virado passado.

FREE AS A BIRD IN A CAGE

Posted: segunda-feira, 30 de setembro de 2013 by ajeugenio in
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7:00 e o despertador tocava alucinadamente no refrão de "Everybody Hurts", do REM. Aquele "Hold on" cantado visceralmente por Michael Stipe era tudo o que não dizia respeito à sua vida. Aliás, se o significado da letra inteira fosse levado ao pé da letra, talvez fariam algum sentido. Sentido, palavra que havia sumido de sua vida desde que fora abandonado pela esposa. Ela não aguentava mais o comportamento potencialmente autodestrutivo e o seu estilo de ser alternado entre o workaholic e o junkie. Deixar uma carta de despedida e partir sem deixar vestígio? Tudo bem, vá lá. Citar "You Can't Always Get What You Want" foi mancada, mas ele gostava de Rolling Stones e ainda entendeu. Mas aquele "Cuide bem de você", porra, teve o mesmo efeito do "pode pular pela janela agora". Se ele não via lá muito sentido em sua vida, agora, ele estava na contramão em busca de um caminhão-cegonha.

Sair da cama era foda. Barbear-se? Ele estava parecendo o Marcelo Camelo - e olha que ele não tinha mais saco para o Los Hermanos. Sua nova concepção de arrumar-se era calçar o All Star sujo e prestes a estar furado, e vestir o jeans quase rasgado de tão gasto e aquela camiseta puída do The Stooges, que já era praticamente a sua segunda pele. Café da manhã? Duas bolachas cream cracker, aquele suco industrializado vencido há dois dias e já estava ótimo. Claro, fumar três cigarros antes de sair de casa era o seu ritual particular. [ao contrário do que possa parecer, ele tinha sobrepeso, apesar da péssima alimentação] O gato comia muito melhor do que ele. No fim, o apartamento era a tradução de sua vida e de quem ele se tornara: uma desordem sem fim.

Nem o emprego em uma agência de publicidade, que o fazia sentir prazer em trabalhar, o motivava mais. Briefings viraram meras formalidades e a criação, que o fazia pirar [no bom sentido], estava um porre de vinho Sinuelo. Nem com os colegas de trabalho, com quem sempre se deu bem, ele queria papo. Ele olhava nos olhos deles e não se via lá, como se ele não existisse. Tudo o que ele queria era isolar-se do mundo e esconder sob a primeira mesa que visse. Quem sabe, recorrer à reclusão ao melhor estilo João Gilberto e Dalton Trevisan era a saída mais fácil.

Ele só queria sair sem rumo para esquecer-se de si. Talvez ele queria encontrar alguém que o fizesse sentir-se outra pessoa, quem sabe alguém bom, mas aquele e os outros dias eram tão-somente dias solitários. Tudo o que lhe restava era beber até esquecer-se de sua identidade ou ficar com outra pessoa, mesmo que fosse pagando, para esquecer da merda de sua vida. E la nave va, mas sem nenhum De Falco para gritar "Vada a bordo, cazzo!" para Schettino. Era inevitável que o navio batesse em alguma rocha ou iceberg. No fundo, era exatamente isso o que ele queria.

ANTIEU

Posted: sábado, 28 de setembro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: ,
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Sou contra a homofobia e Feliciano não me representa, mas acabo usando a expressão "viado" [com "i", mesmo] sem perceber.
Sou a favor da liberdade de expressão e da pluralidade cultural, mas não tenho saco para shows de sertanejo universitário e mando calar a boca se eu discordar.
Acho do caralho que todos leiam até bula de Biotônico Fontoura e manuais de instruções da iogurteira TopTherm [favor ler com a voz da Aracy], mas faço piadas com cinquenta tons de qualquer coisa e não tenho o menor saco para livros de autoajuda.
Não tenho paciência para bêbados, mas já dei alguns vexames e protagonizei cenas lamentáveis nas situações menos indicadas e com pessoas de quem gosto pacas. Ainda me pergunto por que não criaram algo como o Engov para ressaca moral.
Sou radicalmente contra a violência em estádios, mas sempre grito "Chupa!" na janela e tiro um puta sarro de adversários até eles perderem a esportiva.
Sempre reclamo do trânsito, mas nem fodendo dou carona para o meu vizinho. Quem mandou o puto gostar de jazz, sendo que sou chegado em pagode?
Sou daqueles que acham que não se bate em mulher nem com uma flor, mas já tive discussões com a minha namorada bem piores do que as de Sid e Nancy.
Sou um cara calmo, mas volta e meia faço comentários xenófobos e reaças em portais de notícias. Tudo em CAIXA ALTA, é claro.
Nem fodendo falo sobre sexo com os meus filhos, mas sempre vou à loucura quando alguma atriz paga peito na novela e faço questão de mostrar a cena ao meu filho para ele aprender a ser macho.
Quero viver num mundo mais justo, mas quem pertence às classes sociais menos privilegiadas que se foda.
Quero ver todos os políticos corruptos mofando na cadeia, mas sempre tento dar aquela enganada no leão, meto o louco quando pego troco a mais na padaria e faço mesmo aquele gato maroto na TV por assinatura.
Homem pode chorar por dor, amor ou pelo o que vier, mas fazê-lo em público é viadagem. [com "i", algum problema?]
Achei demais ver o povo tomando Brasília tal qual os franceses fizeram com a Bastilha, mas ainda me mando pra Paris na primeira oportunidade.
Sou humilde, mas sou o fodão, só escrevi verdades e não tolero críticas.
A única coisa que sei é que, parafraseando Bortolotto, da minha parte não espero nem um milagre.


Ponto de virada (parte II)

Posted: segunda-feira, 5 de agosto de 2013 by ajeugenio in
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Para Roberto, aquela que tinha tudo para ser mais uma noite melancólica teve um ponto de virada digno de filmes de Tarantino. Em questão de pouco mais de uma hora, os pints de Guinness solitários foram substituídos por um bate-papo despretensioso e para lá de agradável com Diana.

O foda era, mesmo a tendo conhecido naquela noite, ele sentia-se à vontade com ela como há tempos não se sentia com a própria esposa. Roberto nunca a havia traído, mas a relação estava tão inviável que, para ele, ficar com outra mulher naquela noite não seria traição. Isso era tão emblemático que até mesmo a vida sexual, a única coisa que deu certo entre eles por anos, era um sacrifício. Isso quando eles transavam, é claro.

Logo, ele estava pouco se fodendo para o que restava de sua família e, na mesma proporção, era todo ouvidos - e todo o resto - para Diana. A sensação de que eles tinham muito em comum não era por acaso: ela também era dava aulas para turma de comunicação. Mas, ao contrário de Roberto, Diana era professora de multimeios em uma universidade pública. "Eles são chatos demais, mas ao menos dá para tentar conversar com eles", desabafava.

- Então, por que você continua a dar aulas para eles, já que são "chatos demais"? - perguntou Roberto, com o ar provocador que lhe fez colecionar alguns - ou melhor: vários - desafetos ao longo da vida.
- Nunca parei para pensar. E você, mesmo achando os seus alunos um bando de burgueses intratáveis, por que continua? - retrucou Diana, na mesma moeda.
- Nunca parei para pensar também. Talvez para ter sobre o que reclamar e uma justificativa para beber - respondeu Roberto, transitando entre o sarcástico e o blasé.

Entre provocações, tiradas sarcásticas e um pouco de ar blasé, Diana e Roberto iam ficando cada vez mais próximos e envolvidos. Claro, a química entre eles estava fluindo, se bem que para ele qualquer diálogo seria melhor do que as discussões com a (ex?) esposa. Daí, o inevitável aconteceu: eles começaram a se beijar ali mesmo, enquanto o clima ia ficando mais e mais intenso, cada vez mais próximo ao clímax.

Dali, o destino óbvio foi um motel - por sinal, aonde Roberto havia levado sua esposa (em quem ele já pensava como ex) quando eles estavam começando a namorar e aonde eles foram quando a relação ia muito bem, obrigado. Eles tiveram de se segurar para não transar no carro, o que já foi difícil, mas as mãos (nada) bobas já não podiam ser controladas no corredor. Ele teve de manter o mínimo de calma para não comê-la ali mesmo, mas faltou pouco para não resistir e deixar o seu lado visceral entrar em cena antes mesmo de girar a chave da fechadura. Bastou fechar a porta para aproveitar todos os espaços e posições que eram possíveis. Aquela havia sido sua transa mais selvagem em anos. Foi como se ele redescobrisse o cara sedutor e dominador que ele fora um dia.

Horas depois, quando já tomavam banho - juntos - para irem embora, Roberto fez a revelação (ou melhor: cometeu a gafe) da noite: "Há tempos não tinha uma noite tão incrível ao ponto de não dar a mínima para a cara de revolta da minha espos... Digo, ex-esposa", disse, como se estivesse afirmando a si próprio que ele já estava separado. Diana, que até então estava em êxtase e mais do que interessada em revê-lo, não conseguiu conter a decepção e a raiva e começou a xingá-lo por todos os insultos possíveis e imagináveis. "Não quero ouvir suas desculpas esfarrapadas! SAIA DA MINHA FRENTE!", gritava, conforme sua voz (não, não eram os gemidos) ecoava pelos corredores.

Roberto ainda tentou argumentar e falar à altura, mas pouco adiantaram as tentativas. Mesmo abatido pelo desfecho da noite - "Pior que gostei pra caralho dela", pensava enquanto abotoava a camisa e ia ao carro -, ele estava determinado a tomar uma atitude. Naquele mesmo dia, ele ligaria ao advogado, um velho conhecido, e daria entrada na papelada do divórcio.

Ponto de virada (parte I)

Posted: domingo, 4 de agosto de 2013 by ajeugenio in
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Mais uma noite como qualquer outra. Mais uma vez aliviado por sair do ambiente burguês e hostil que era a universidade onde Roberto dava aulas de teoria da comunicação. Ele não aguentava mais aquele bando de jovens presunçosos e arrogantes. "Eles até podem ser filhos de empresários e pessoas influentes, mas nem fodendo eles serão bons profissionais", sempre confidenciava aos amigos. Mas eles eram os menores dos problemas: a convivência com o reitor da instituição estava inviável - um nunca suportou o outro, mas a última discussão foi a pá de cal na relação até então apenas pouco amigável - e sua vida pessoal estava de mal a pior. O casamento estava por um fio - ele não suportava mais a (ainda?) esposa, por quem um dia foi louco, por causa do desgaste natural que acontece com o passar do tempo. De quebra, até mesmo a relação com o filho estava desgastada, mas isso era natural se fosse levar em conta que lidar com adolescentes é difícil - "pra caralho", sempre completava mentalmente.

Aquela noite, em particular, estava mais melancólica do que todas as anteriores juntas. Voltar para casa estava fora de cogitação. Ir à happy hour com os outros professores do curso de jornalismo idem. Vá lá, ele se dava bem com eles, mas aquela noite seria para beber, reorganizar as ideias e, quem sabe, encontrar uma saída para a merda emocional na qual ele estava. Nem beber com os amigos estava em seus planos. O bar do qual ele era cliente de longa data foi o destino natural.

Entre um pint e outro de Guinness, além dos cigarros tragados, ele tentava entender o que aconteceu com o jovem idealista e sonhador que ele fora um dia. Claro, ele também tentava relembrar sua vida, momento a momento, para entender o que deu errado: por que ele deixou de amar a pessoa por quem ele ficou a fim desde o dia em que a viu pela primeira vez, o que deu na sua cabeça para largar o emprego dos sonhos após um bate-boca com o chefe de jornalismo da emissora na qual ele havia penado para entrar, e por que ele não conseguia reconhecer a si próprio no espelho. As respostas a todas essas perguntas pareciam inexistir, mas a angústia e os pints consumidos estavam aumentando. Ele já estava esperando a hora de Joãozinho, garçom conhecido de longa data, dizer: "Doutor [sic], pega leve! Chama o táxi e busca o carro amanhã. Guardo ele [sic] se o senhor quiser". Sim, isso aconteceu por outras vezes. Nada como uma ou outra regalia às quais só os clientes antigos têm direito. E Roberto ria ao pensar nisso.

Enquanto estava perdido nos próprios pensamentos, ele nem reparou que uma mulher havia se sentado ao na cadeira ao lado e assim foi por algum tempo, até que ele ouviu: "Não sei por que está rindo sozinho, mas deve ser algo engraçado". Ele ficou sem palavras e não conseguia responder nada de imediato. O sorriso, que destacava seus belos dentes, assim como o olhar penetrante, o deixaram hipnotizado. "Nada, nada. Só uma besteira na qual pensei, nada mais", disse Roberto, meio sem jeito. "Não me lembro de ter te visto aqui antes. Qual o seu nome?", perguntou ao mostrar-se à vontade como há tempos não se sentia. "Diana, muito prazer. E o seu?".

Há tempos ele não se sentia tão aberto ao acaso como naquela noite, sabe-se lá o motivo - nem ele sabia. Tudo o que Roberto pensava era deixar a noite rolar. E ele já sabia como esquecer de todos os problemas, pelo menos por algumas horas.

Unnamed feeling

Posted: quinta-feira, 1 de agosto de 2013 by ajeugenio in
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Ele era um cara difícil para lidar. Seu comportamento aparentava dar sinais de calma, mas era apenas irritação controlada. Pouco importava a situação: ele parecia sempre controlar os próprios atos, pensamentos, reações e palavras. Era como se ele tentasse deixar o lado médico falar mais alto o tempo todo e enjaular o lado monstro. Era como se ele tivesse medo do dark side ofuscar a luz, por assim dizer. Ou como se ele tentasse se ver refletido nos olhos dos outros e não visse ninguém ali.

No trabalho? Ele respirava fundo a cada vez que o chefe jogava vários relatórios em sua mesa, como se analisá-los fosse a única coisa que ele fazia na porra da sua vida. "Quero tudo finalizado até as 19h, Carlos!", bradava o chefe, típico tiozinho de 50 anos meio careca, barrigudo e com ares de tecnocrata (eles ainda existem?). Ele tinha vontade de voar no pescoço dele, dar uns bons socos no nariz dele e sair dali à Michael Douglas em "Um Dia de Fúria". Mas o medo de imaginar o que todos pensariam sobre ele o fazia engolir aquilo a seco, como se fosse uma dose de cachaça que desce rasgando, e seguir com a sua vidinha de merda. Claro, aquilo tudo viraria tema para mais uma sessão de terapia, à qual, entre idas e vindas, ele ia há uns três anos, desde que havia se divorciado.

Entre os amigos? Todos eram unânimes. "Carlinhos, você precisa relaxar. Nesse ritmo você vai conseguir uma ponte de safena, cara!", ele chegou a ouvir uma vez do seu melhor amigo. Por mais que ele tentasse relaxar, algo sempre o fazia estar distante de tudo ou de todos, como se ele não se encaixasse ali. Ou melhor: como se ele não se encaixasse em lugar nenhum, sendo outsider entre os próprios outsiders. Até mesmo com a própria família. O que o fazia se sentir assim? Nem ele sabia. Tudo foi considerado: traumas de infância, algum relacionamento mal resolvido na adolescência, até mesmo fobia social. Mesmo assim, nada parecia fazer sentido.

Namoradas, dates e afins? Dizer que ele não conseguia se entregar a nenhuma delas chega a ser redundante. Ele parecia sempre esperar pelo fim, o que realmente era inevitável graças à maneira como ele encarava tudo. Todos os seus relacionamentos podem ser resumidos no bilhete que sua ex-esposa deixou ao partir e nunca mais voltar: "Essa sua mania de colocar um muro entre você e o mundo, só para não se machucar, ainda vai te fazer viver sozinho. Aguentei o que pude e cheguei no meu limite". Até hoje aquilo lhe dilacerava a alma. Até dava para tentar esquecer entre uma dose e outra de uísque, mas tudo voltava à tona quando ele acordava ao lado de outra mulher que não fosse sua ex. Foda é que ele fazia tudo em repeat eterno, como se estivesse punindo a si próprio por ter perdido a mulher a quem amava.

Já em família, o convívio era dos mais conturbados. Para cada encontro agradável, outros dois terminavam com algum tipo de discussão, por mais que o motivo fosse o mais tolo e comum possível. Ele não conseguia se perdoar e encostar tranquilamente a cabeça no travesseiro por ser intratável logo com quem ele mais amava. Sua mãe ainda o entendia - toda mãe entende o filho, por mais canalha que seja -, mas os conflitos com o pai eram frequentes. Logo com ele, a quem ele sempre admirou. A merda toda era que, justamente por ser diferente ao extremo de seu velho, a nada boa e velha raiva de si próprio sempre vinham à tona. Era ainda mais foda que isso tudo era externado da pior maneira possível e, por mais contraditório que parecesse, aquilo tudo fosse a mola propulsora para conversas acaloradas virem à tona. Por mais que ele tentasse, tudo sempre terminava mal. Ele sempre teve o raro dom de estragar tudo, de foder a própria vida e magoar àqueles quem ele mais amava. Isso era um peso que ele não conseguia mais segurar.

Tudo isso passava pela sua cabeça enquanto dava entrada na emergência de um hospital, ao sentir fortes dores no peito e falta de ar, enquanto era entubado. Os pensamentos ficavam cada vez mais confusos e lentos com o passar do tempo, e cessaram conforme a visão ficava mais e mais turva e escura.

Esquecer

Posted: quinta-feira, 25 de julho de 2013 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Saiba que aquele bilhete deixado na mesa, embaixo daquele Kafka, me faz ir às lágrimas até hoje. Faz um ano desde aquele dia, que por sinal fodeu com a minha vida desde então e não consigo esquecê-lo. E olha que tento me fazer de durão, como sempre fiz e você sabe disso. Ter de ler: "Cansei da sua loucura e da sua insegurança disfarçada de arrogância. Te amo, mas não dá mais!" doeu tanto quanto as porradas do Weidman no Anderson Silva. Mesmo assim, dava pra entender. Mas citar Jeff Buckley foi muita filha da putice da sua parte, saiba disso. Caralho, você sempre soube que choro que nem criança quando ouço Forget Her e So Real! Você não tinha esse direito.

Tá, admito que nunca fui grande coisa. Todas as suas queixas sobre eu não te amar não faziam o menor sentido. Você nunca me deixou te dizer que a minha aparente indiferença era desilusão. Sim, desilusão, mas por ser incapaz de ser o homem que você merecia ter por perto. Soube pela Lia (ao contrário do que você jura de pés juntos, nunca fiquei com ela enquanto estivemos juntos) que você encontrou alguém que te trata como você merece e te faz se sentir mais amada. Saber que ele é um coxinha de merda é desolador, mas pelo menos você está feliz. Isso alivia um pouco a dor, pelo menos.

Não sei se você teve mais notícias de mim (espero que não, pois só fiz mal para você, aposto), mas o meu comportamento não anda tão autodestrutivo como podem ter te dito por aí. Tá bom, reconheço que tenho bebido um pouco mais do que o normal, vá lá, mas tenho de ter o mínimo de bom senso nessa porra de vida. Aquele trampo na livraria rende uma mixaria, você sabe, e o aluguel tá mais caro. Nem falo porra nenhuma da banda larga e das outras contas porque não quero ficar com mais pena de mim do que a que já se tornou habitual desde que você partiu e nunca mais voltou (com tanta música do Tim, por que tinha de lembrar logo dessa, porra?!)

Falando em música, tudo lembra você. Sabe o vinil do Exile On Main St., aquele que nem fodendo deixava você tocar? Cada faixa lembra todas as vezes que transamos enquanto ele rolava ao fundo, daquele dia em que pintamos o apê (foi engraçado, diz aí), cada vez que ficávamos grudados um ao outro no sofá... Então, tá foda até mesmo olhar pra capa. Talvez descole uma grana se eu vender no sebo do Zézinho, se pá. Los Hermanos, então, fere os ouvidos e a alma. Sem contar que não tô mais com saco pro pedantismo daquelas letras que me pareciam incríveis até você cair no mundo. O bom e velho B.B., o rei, tem sido a minha companhia habitual. Devidamente acompanhado pelo igualmente bom e velho Jack, é claro. Em que momento deixei de ser o cara blasé que sempre fui até te conhecer pra virar aquele loser do caralho do (500) Dias Com Ela? Foda que nem posso te culpar por isso.

É foda dar o braço a torcer, mas você ainda faz parte da minha vida, por mais que eu tente te esquecer. Todos os porres nos últimos tempos foram pra te deletar da minha mente. Todas as mulheres com quem fiquei nos últimos tempos - as que paguei, inclusive -, todas elas foram tentativas desesperadas de te esquecer (mesmo assim, nunca fiquei com a Lia, já te disse isso?). Todas as crises de choro que tive desde então foram de desespero por não conseguir esquecer de que te amo, que te amo muito mais do que a mim mesmo. Acho que ando tão chato que até o Betão e o Bernardo estão evitando fazer rolês comigo, de tanto que fico reclamando da vida. E olha que desde os tempos de escola fomos inseparáveis.

Enfim, tudo o que quero é que você seja feliz, mesmo com aquele coxinha de merda. Não se preocupe comigo, pois já me acostumei com a melancolia. Fique em paz e cuide bem de você. É a única coisa que ainda me importa.

CRIATIVIDADE EM CRISE

Posted: sábado, 2 de fevereiro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Horas em frente ao computador, travando uma batalha silenciosa contra o programa de edição de texto. As palavras não saíam. Ou melhor, pareciam estar num triângulo das Bermudas intelectual, oculto em algum canto igualmente inacessível de seu cérebro. O suor começava a escorrer pelas têmporas, juntamente com o tempo por entre os vãos das mãos, tal qual a areia que cai no pêndulo.

O bloqueio criativo estava foda. Garrafas e garrafas long neck da cerveja preferida do escritor, aquela mesma que é a queridinha entre os descolados da rua Augusta, haviam sido esvaziadas. Maços a fio de cigarro haviam sido transformados em cinzas. Mas nada saía. Nenhum sinal, nenhum fato para servir como insight, porra nenhuma aparecia para ajudá-lo. Os dedos, nervosos, apertavam o teclado no piloto automático, sem objetivo algum. O desespero era tamanho ao ponto de recursos, digamos, ilegais terem sido cogitados. Todavia, faltava coragem para recorrer a eles.

O pessoal da editora estava no pé, querendo saber em que estágio a obra estava. Ou melhor, em que estágio não estava. O deadline estava chegando à reta final e não havia sequer o primeiro capítulo. Corrigindo: não havia história. “Maldito mercado!”, praguejava o nosso amigo escritor. Tudo por culpa de um livro sobre histórias sujas do underground paulistano – que, por sinal, ele mesmo não havia sequer vivido metade –, que ele havia escrito despretensiosamente, mas virara um best seller por motivos que até ele desconhecia. Por causa daquilo – que se transformou na sua maldição e perigava virar o seu Rosebud -, ele virou a galinha dos ovos de ouro da editora, e sua vida, um inferno que nem Dante conseguiria imaginar com riqueza de detalhes. Ele estava numa cilada e não havia nenhum Pedro para alertá-lo a respeito.

Tudo o que ele queria evitar eram os clichês literários. Tons disso e daquilo, vampiros sem essência alguma e todo o resto não faziam a sua cabeça e estavam fora de cogitação. E nem fodendo ele queria transformar o que era tido como maldito pelas mães católicas em algo cultuado pelas massas.

Histórias sobre o Copan? Havia várias, mas já haviam sido contadas – algumas à exaustão, diga-se de passagem. Cotidiano de tipos insólitos em locais decadentes? Narrativas desse tipo foram escritas aos montes. Ele não via saída para o labirinto literário em que se metera. Nem o cinema ou a música pareciam querer colaborar com ele.

O nosso amigo cansou de lutar em vão com a tela branca, tal qual Kasparov jogando xadrez com um computador, e saiu sem rumo. Tudo bem que sua escapada soou como a de um pai de família que sai para comprar um cigarro e não mais volta, mas aquilo era necessário. Um pouco de agitação e de vida não iriam atrapalhar. Enquanto isso, o editor de texto continuaria ali, pálido e inerte, esperando que letras pretas e serifadas pudessem lhe dar um pouco de vida. Vida que seguia sem palavras e sem rumo.