ZERO ABSOLUTO

Posted: domingo, 6 de outubro de 2013 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Noite de frio em São Paulo. O vento está gélido e cortante e as ruas, beirando o desértico. As poucas pessoas que se atreveram a sair de casa pareciam ser muito mais cidadãs de Edimburgo do que de São Paulo. Para completar, a garoa fina tornava o clima ainda mais insuportável. Zé, que fazia das calçadas da Mooca o seu lar, tentava encontrar forças para aguentar aquele frio lancinante. Nem o cobertor Parahyba parecia aliviar o frio na espinha, pernas, braços e alma.

Naquela noite, depois de muito tempo, ele finalmente havia voltado a sentir-se alguém, de fato. Por causa do frio, é verdade. Ele havia perdido o costume de pensar, assim como perdera o hábito de falar. Quem o visse poderia até compará-lo com Fabiano, aquele de "Vidas Secas", por causa do vocabulário quase inexistente. Para não dizer que ele não conseguia articular palavras, ele conseguia dizer o bastante pedir uns trocados, que seriam revertidos em aguardente. A única refeição que ele fazia no dia era o sopão entregue no fim do dia por um casal de idosos abnegados.

Nem ele mesmo sabia o motivo, mas naquela noite os pensamentos voltaram a fazer seu cérebro ficar a mil, como nos tempos em que ele trabalhava como advogado. "Madalena", ele balbuciava, apesar do maxilar tremendo por causa do frio. Era por causa de Madalena que sua vida e sua mente viraram pelo avesso. Ele a amou muito mais do que a si próprio por sete anos, somando um ano em que ficaram enrolados, outro ano de namoro, dois de noivado e os três em que ficaram casados. Ele não conseguia entender por que ela o trocou por seu melhor amigo - logo ele, a quem ele considerava como um irmão. Aquilo doeu tanto, mas tanto, que ele largou o emprego, saiu de casa só com a roupa do corpo e foi parar nas ruas. Foi naquele momento em que José Luiz virou Zé e fez o seu escritório nas calçadas e embaixo da ponte.

Uma lágrima furtiva rolou enquanto ele se lembrava de Madalena e da sua vida até aquela hora e vez que nem Guimarães Rosa conseguiria criar. Nem a cachaça o ajudava mais a esquecer-se dela e do frio. Do nada, os pensamentos ficavam mais lentos, assim como a respiração. Pouco a pouco, enquanto tentava ficar em posição fetal, abaixo do cobertor, ele deixava de sentir as mãos e os pés, e a dormência dominava paulatinamente o seu corpo por completo. A visão, bem aos poucos, ia ficando turva e escura. E o coração, já endurecido, foi ficando cada vez mais lento e mais gelado como o clima naquela noite.

2 comentários:

  1. Anônimo says:

    Poderia chamá-lo de suicida?

  1. ajeugenio says:

    Formalmente, não. Ele está mais para suicida social, mesmo.