Desespero

Posted: domingo, 19 de outubro de 2014 by ajeugenio in Marcadores: ,
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Não consigo me entregar de corpo e alma
Não consigo mergulhar de cabeça
Nada me faz acreditar que eu te mereça
Quando estou ao teu lado, eu começo a me beliscar
Que você goste da minha companhia, eu não consigo acreditar
Não consigo me ver ao seu lado
Não consigo conceber você perder seu tempo comigo
Por isso que sempre quando estou contigo eu fico calado
Não é porque eu só olhe para o meu umbigo
Confesso, nega, que tudo o que quero é abrigo
Mas não posso oferecê-lo a ti
Aliás, sou incapaz de te oferecer paz de espírito
Não consigo me declarar porque sei que, cedo ou tarde, você vai me largar
Tenho medo de te amar porque sei que um dia
Você encontrará alguém melhor do que eu
E vou te entender porque, no fundo,
Tudo o que quero é fugir de mim.

LOW SELFIE ESTEEM

Posted: sexta-feira, 15 de agosto de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Ele não entendia o que se passava. Há até poucos meses, os perfis dele no Instagram e Facebook bombavam. Cada selfie que ele tirava rendia cliques e mais cliques. Havia para todos os momentos e gostos: ônibus, cama, trabalho, caminhada no Ibirapuera, faculdade, festas com amigos, almoço em família, em frente ao espelho ou ao usar o recurso para selfies (!) no celular... Até mesmo ao cagar ou ao doar sangue, as selfies eram obrigatórias. Até mesmo o Romero Britto na parede do consultório do dentista era alvo certeiro de uma foto em que ele aparecia sorrindo. Nem mesmo Narciso curtia tanto a própria imagem se comparado com o "Selfie Man".

Mas havia algum tempo que havia algo de podre em seu reino. Os "likes" foram ficando mais e mais escassos. Nem mesmo a própria mãe curtia mais. "Você não é modelo, meu filho", disse a matriarca certa vez. Era inconcebível encarar que ninguém mais o curtia. As surras que ele tomava do vídeo de um bêbado cantando "Eu Bebo Sim", da foto de um recém-nascido, do link de uma notícia sobre política e até de comentários sobre o Corinthians eram mais feias do que o 7 x 1 na Copa ou do que Ribéry fazendo careta. Estava foda viver online.

A vida andava insossa. Ou melhor: na vibe #nofilter. Assim foi até o dia em que ele teve uma ideia brilhante: tirar uma selfie do alto de uma torre. Se fosse no pôr-do-Sol, perfeito. Dias se passaram enquanto ele elaborava o plano: enganar os guardas, escalar metros ininterruptos até o topo, sacar o iPhone e sorrir não pareciam ser tarefas tão difíceis assim.

Sexta-feira, o dia escolhido para a proeza. As horas não passavam na agência de publicidade, enquanto a ansiedade chegava à flor da pele. "Já posso prever o espanto do pessoal ao ver a selfie. Vou parar numa caralhada de portais de entretenimento", pensava. E assim foi até dar 17h30. Na pressa para ir embora, ele não reparou que esqueceu a carteira e que derrubou a tia do café. De quebra, desceu sozinho no elevador e deixou muita gente puta da vida na fila do elevador.

Após trombar em meio mundo e derrubar um cara que estava parado à esquerda na escada rolante, enfim ele havia chegado à torre. Na ânsia para chegar ao topo, ele quase caiu por três vezes, mas deu sorte. Ao chegar em seu destino, ele parecia desafiar a gravidade. Tudo ia bem até que, na busca do horizonte perfeito para realçar sua face, ele perdera o equilíbrio e caiu 20 andares. Curiosos tiraram fotos do cadáver e compartilhavam em WhatsApps e Snapchats da vida. O link sobre sua morte teve uma porrada de curtidas e comentários a rodo da série "Se fodeu, mané". Sua morte foi compartilhada por internautas sádicos, mas esquecida em minutos.

RESSACA MORAL

Posted: terça-feira, 29 de julho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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O Sol invadia o quarto como um assaltante invade uma loja: sem cerimônia e violentamente. O efeito que causava nos meus olhos era devastador: era como se um clarão de luz estourasse à minha frente. A minha cabeça martelava e causava tontura, tal qual em um marinheiro à deriva em alto mar. Eu só sabia que estava em casa porque a minha cama e o meu travesseiro são inconfundíveis. Eu não me lembrava sobre como a noite anterior havia sido. Ou melhor: não me lembro de nada do que fiz, menos ainda de quem encontrei. Havia ficado com alguém? Havia transado? Não me lembrava. Só sabia que não tinha mais físico e idade para beber descontroladamente. "Que merda, Júnior! Você não é mais um moleque de 18 anos, porra!". Só conseguia pensar nisso naqueles minutos iniciais de uma tarde de domingo.

Conforme as perguntas se juntavam ao turbilhão na minha cabeça e a deixavam ainda mais dolorida, fui olhar no relógio do celular. 15h10. "Legal! Mais um domingo perdido!", pensava. Desde que Beth, a minha ex, havia ido embora, a minha vida havia virado esta coisa: trabalhar que nem condenado durante a semana, fazer frilas à noite e beber aos fins de semana como se não houvesse amanhã. No fundo, eu queria voltar a ter uma vida regrada, encontrar alguém e fazer o que qualquer casal faz, como ir ao cinema, andar sem pressa pelo Ibirapuera e deitar na grama, ver o pôr-do-Sol em alguma praça, andar na ciclofaixa e rir da cara de cansaço dela, essas porras. Mas não: eu estava sem rumo. A minha vida estava em rota de colisão com algo que eu nem fazia ideia do que era.

Pouco a pouco, algumas peças começavam a surgir e a me ajudar a montar o quebra-cabeça dos meus pensamentos. Havia perfume feminino e vestígios de sexo na minha cama. O perfume era o mesmo da Beth. "Não é possível. Eu não faria isso. Eu não seria tão burro." É, alguém havia dormido ali. Mas quem? "Estava muito louco, mesmo. Como consegui abrir a porta? Como trouxe uma desconhecida para cá? Por que não a levei ao Savoy?" Perguntas, perguntas e mais perguntas. Todas sem resposta. Parecia até o resumo da minha vida: uma grande confusão sem explicação ou razão alguma para existir.

O chão parecia mover sob os meus pés conforme eu tentava andar pelo apê. A ressaca ainda estava braba, cara. Havia uma toalha molhada no banheiro, mas eu só havia tomado banho na noite anterior. "Ela tomou banho por aqui, certeza". Aroma de café no ar. "Porra, mas que liberdade é essa? Só a minha mãe tem carta branca pra mexer em tudo em casa, por mais que ela recrimine - com razão - o meu estilo de vida...". Ela, não importando quem, devia saber que estava de ressaca e tentou fazer a boa ação do dia. Devo agradecer: o café estava no ponto, bem do jeito que eu gosto. Mas só a minha mãe e a Beth sabiam de como eu gostava de tomá-lo. "Será? Não, eu não seria tão burro. Será possível!?" Um misto de raiva e desespero começou a martelar a minha cabeça, que doía um pouco menos, mas ainda doía. Sim, eu ainda amava Beth, por mais orgulhoso que eu fosse e relutasse em revê-la. Tudo o que a minha alma queria era fazer as pazes com ela e tê-la de novo em minha vida, mas a minha mente, essa rocha em forma de cérebro, emperrava tudo.

Andando um pouco mais pela casa, vi o jornal sobre a mesa, com as revistas de música e cinema organizadas como há tempos não estavam. Sobre a última edição, uma folha de sulfite. Temi que fosse um bilhete dela. Minhas pernas congelaram por alguns instantes, mas consegui recobrá-las e andei até lá. Ao pegar a folha, a respiração ficou ofegante. "É a letra dela. Puta que o pariu! Puta que o pariu! Puta que o pariu!" Só conseguia pensar nisso. Após recobrar o fôlego, tomei coragem e tive de segurar as lágrimas.

"Júnior,

Você continua o mesmo inconsequente que conheci. Inseguro, mas inconsequente. Você estava bebendo sozinho no bar e te vi lá. Você estava alterado, mas ainda não estava bêbado pra valer. Ficamos e viemos pra cá. Você pediu pra eu ficar e pra voltarmos. Mas quero ouvir isso de ti quando estiver sóbrio e deixar de ser tão orgulhoso. Sei que ainda me ama - bêbados não mentem. Só peço o seguinte: não tenha medo de deixar a emoção falar mais alto e cuide melhor de ti. A casa estava uma bagunça só. Aposto que a sua mente também está. Ainda te amo, mas você precisa se amar.

Cuide bem de você.

Beth."

Porra, aquela foi uma puta porrada no estômago. Quis chorar, mas as lágrimas não caíam. Queria gritar, mas a voz insistia em travar. Tentei ligar para ela, mas os dedos travaram sobre o teclado do smartphone. Saí para achar algum restaurante aberto. Saí para fugir de mim.

EM RUÍNAS

Posted: domingo, 6 de julho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , , ,
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Era uma casa abandonada, dessas com arquitetura bem antiga, localizada em um bairro periférico que foi tomado - ou melhor: devastado - pela especulação imobiliária. Os tijolos descobertos, que à primeira vista podem transmitir a impressão de desleixo ou até mesmo de que as paredes irão cair, davam um charme algo cool ao local. Por outro lado, as folhas caídas de árvores e páginas amareladas de jornais, que estavam acumuladas no quintal, davam ares tristes à casa. As paredes descascadas por dentro e o vazio em cada cômodo causavam a sensação de se estar em uma locação de filme de guerra. Foi essa a sensação que José teve ao desbravá-la pela última vez.

Aquela casa, que naquele dia parecia ser uma sombra pálida do que fora um dia, foi onde José cresceu. Conforme ele a explorava, vários momentos vinham à tona: as vezes em que saía com o pai, seja num Opala cinza ou de bicicleta, para passeios sempre imprevisíveis e agradáveis; quando jogava futebol no quintal com o irmão; as festas de aniversário que seus pais organizavam e às quais a molecada do bairro comparecia; os ensaios no quarto com a banda de punk rock da qual fez parte... À medida em que ele entrava em cada cômodo, era como se ele visse hologramas de si próprio, quando mais jovem, e de seus pais andando pela a que fora um dia a sua casa. Até mesmo situações que lhe pareciam pavorosas, como as broncas e castigos que recebia dos pais por atitudes como sujar a parede com bola de futebol; ficar acordado até tarde vendo filmes "de sacanagem", como dizia a sua mãe; ou por causa da bagunça no quarto, arrancaram risadas e lágrimas simultâneas de José. Sim, suas emoções estavam à flor da pele e dicotômicas, transitando entre a saudade e a tristeza.

Ao entrar na cozinha, o baque veio mais forte: onde outrora aconteciam diversos jantares em família, nos quais cada um contava como havia sido o dia, ora entre risadas, ora entre um quê de indignação, o silêncio e a melancolia davam o tom. Eis que ele decidiu vencer os fantasmas em sua mente e decidiu entrar no quarto. Sim, o local onde ele se refugiava. O local onde estudava e tomou gosto pela leitura. O local onde ele ouviu pela primeira vez "Smells Like Teen Spirit" e se tornou viciado em Nirvana, assim como aquele mesmo quarto foi o lugar onde ele se trancou para chorar copiosamente quando soube da morte de Kurt Cobain. Idem para diversas vezes quando ele ouvia um "não" de alguma guria ou após discutir com a sua namoradinha à época. O local onde ele aprendeu a viver na linha tênue entre a felicidade e o desespero. Instintiva e involuntariamente, ele se sentou em posição fetal junto à parede daquele mesmo quarto e começou a chorar. Chorar de tristeza, de emoção e de indignação. Ele não queria acreditar que aquele quarto, aquela cozinha, aquela sala de estar, enfim, a sua casa seria derrubada para a construção de mais um prédio - "mais um prédio, porra?!", indagava, entre as lágrimas que ele não conseguia conter.

José estava incrédulo. Ele não queria acreditar que aquele lugar, onde ele queria morar com a esposa antes de se casar, iria virar ruína. José pensou em trazer o filho para mostrar a casa onde ele tivera alguns dos momentos mais alegres de sua vida, mas ele temia que Juninho, típico garoto de condomínio e representante da geração Playstation, não desse a mínima para aquilo.

Mesmo contra a vontade, José teve de reunir forças para sair daquela casa, onde estaria pela última vez. Já fora dali, ele olhou, tentando conter as lágrimas, aquele local. Ele não queria acreditar que uma construtora a derrubaria. Ele não queria aceitar a ideia de que suas lembranças e emoções virariam pó. Ele não queria aceitar que suas raízes, tão fortemente fincadas ali, seriam arrancadas. Ele não queria aceitar que o lucro e o concreto haviam vencido o lado humano. José não queria dar o braço a torcer, mas ele havia acabado de perder o resto de fé no ser humano.

DOIS PÊNALTIS

Posted: segunda-feira, 30 de junho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: ,
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CRÉDITO: Fabrice Coffrini / AFP
 
Anos 90. Eu era apenas um moleque recém-saído das fraldas e que estava tendo contatos iniciais com o futebol. Lembranças resumiam-se à camisa alvinegra do Corinthians, ao tetracampeonato da seleção brasileira e à camisa tricolor do Grêmio [OK, não sou gaúcho, não tenho passaporte gaudério e não costumo falar "Taca-le pau no carrinho, Marcos", mas aquela camisa me chamava a atenção por causa do título da Libertadores de 1995. Parêntese feito]. No entanto, uma coisa que dona Maria, aka primeira-dama e matriarca do clã dos Eugênios, sempre dizia o seguinte para quem quisesse ouvir, em alto e bom som: Taffarel era um puta de um frangueiro [parêntese #2: ela nunca falaria um palavrão. Grifo meu]. E passei os anos seguintes com aquilo martelando na cabeça. Não conseguia conceber a ideia do velho TAFFA, o frangueiro-mor para dona Maria, com a camisa #1 da seleção.

2014. Copa nesta quebrada que tem palmeiras onde canta o sabiá e onde cerveja de milho é instituição nacional. O goleiro que veste a mesma camisa #1, usada por Taffarel tempos atrás, é Júlio César - não o imperador romano, cara pálida. O mesmo Júlio César que foi considerado um dos melhores goleiros do mundo em 2010. O mesmo Júlio César que, ao cair em desgraça após a derrota do Brasil para a Holanda naquele mesmo ano, comeu o pão que o diabo amassou no QPR, da Inglaterra, e hoje foi virar goleiro de hóquei jogar no Canadá - consta que ele não encontrou Luíza, AQUELA. O mesmo Júlio César que, até o jogo Brasil x Chile, era visto com desconfiança até por Stevie Wonder. O mesmo Júlio César, que era um dos alvos preferenciais, se não o prioritário, de todo e qualquer corneteiro de plantão.

1998. Semifinal entre Brasil x Holanda (!!!!), válida pela Copa de 1998, na França (quem comprou? Sei lá). Após um puta sufoco, que terminou em 1 x 1, o jogo foi à decisão por pênaltis. Dona Maria saiu da sala, pois não queria ver aquele massacre psicológico [ei, Thiago Silva, ela pode fazer isso, fera]. Pois bem, aquele mesmo Taffarel, sobre quem cresci ouvindo que era um frangueiro que não merecia nem jogar o "Desafio ao Galo", pegou dois pênaltis [de Cocu e Ronald de Boer? I think so]. Da noite para o dia, o velho TAFFA virou herói nacional. Até o Brasil tomar uma traulitada contra o exército azul, liderado por Zidane, é claro.

28 de junho de 2014. O Brasil tomou um puta de um sufoco contra o Chile, que tinha a melhor seleção desde quando Pinochet ainda engraxava coturnos no exército local. Era um adversário de respeito e adepto da ousadia e alegria, mas não deixou de ser vergonhoso, o resultado. Ainda mais pelo nervosismo e letargia da equipe em campo, em especial no segundo tempo. Durante a decisão por pênaltis, cuja disputa o CAPITÃO Thiago Silva não quis ver por estar ~tenso~, aquele mesmo Júlio César pegou dois pênaltis - OK, contou com a sorte, ajudou a classificar a seleção e ainda salvou as peles de Willian e Hulk. Aquele mesmo Júlio César, que desde 2010 só entrou em furada.

Dizem que Copas do Mundo criam heróis, vilões, coadjuvantes de luxo e tramas dignas de concorrer à Palma de Ouro de Cannes - ou à Framboesa de Ouro, sei lá. Dizem que Copas do Mundo podem levar pessoas do céu ao inferno em questão de dias - Suárez, que o fez com unhas e dentes (!!!!), que o diga. Dizem que Copas do Mundo podem mudar paradigmas e fazer impérios ruírem [adeus, tiki-taka]. Mas Copas do Mundo também podem dar tons épicos a vidas e levá-las da desgraça à redenção. Esse foi o Caso de Júlio César após a vitória (ou derrota moral?) contra o Chile. Mesmo a seleção tendo saído com a imagem arranhada, ele foi o cara daquele jogo. Isso até contra a Colômbia, que terá, na próxima sexta-feira, a grande chance de acertas as contas com o passado e mostrar que a geração de Higuita, Rincón, Valderrama e cia. não encantou o mundo do futebol em vão.

Até lá, a honra brasileira (em campo, é claro) está nas mãos de Júlio César.

EMOTION SICKNESS

Posted: terça-feira, 24 de junho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Acordar era um martírio para ele. Pensar em sair da cama e viver em sociedade fazia sua respiração ficar mais e mais ofegante. Seu desânimo e desilusão eram visíveis até mesmo em seu senso de humor, cada vez mais corrosivo e que alternava entre a ironia com a agressividade. Seus pais, amigos e até mesmo uma ex-namorada estavam cada vez mais preocupados com o seu comportamento, que transitavam entre a letargia e a autodestruição. Tudo o que ele queria era ser esquecido por eles. "Todo o mundo tem coisas mais importantes para pensar do que se preocupar comigo, como a consistência da merda de cada um deles, sei lá", ele pensava, entre um copo e outro de cerveja. Ele não se julgava digno da preocupação de ninguém. Nem dos pais, tampouco dos amigos. Menos ainda da puta que passara a ser sua confidente e psicóloga, digamos assim.

Ele havia desistido de tudo, pelo menos emocionalmente falando. Não sentia mais tesão em trabalhar, mesmo sendo aquele emprego o trabalho de seus sonhos. Ele havia desistido de cuidados pessoais básicos - sua barba, cada vez mais espessa, parecia a de um hipster; e as roupas, cada vez mais rotas e com odor cada vez menos agradável. Ele havia desistido de se alimentar. Ele não sabia dizer a origem do vazio e do desespero que ele sentia. O fato é que aquilo, mesmo sendo de origem desconhecida, havia tomado conta dele e ele não sabia como se livrar daquilo. Era como se nada mais fizesse sentido em sua vida. Em suma: ele havia desistido de si próprio. Ele havia desistido de viver.

Sair com os amigos - leia-se os que ainda o suportavam - era divertido, mas a alegria era fugaz e efêmera. Em segundos, ele voltava à letargia moral. Sexo? Era algo cada vez mais mecânico e só por necessidade fisiológica, ou seja, nada de prazer. Chorar? Ele queria, mas era incapaz. Ele havia se isolado de seu mundo quando percebeu que queria ajuda e queria gritar "Socorro!" para o mundo, mas o seu orgulho o impedia de fazê-lo. Ele estava se afastando, pouco a pouco, daqueles quem ele gostava, tal qual um cão que sente ter chegado o momento de sua morte. Ele queria pedir por auxílio, mas quando tentava, travava e recorria à vibe blasé para não parecer uma criança indefesa. Ele tentava conversar, mas não via nada nos olhos dos outros quando tentava se ver lá. Era como ele não existisse para si próprio.

O seu comportamento estava mais inconsequente, como se ele procurasse pela morte em cada esquina, sem medir riscos ou consequências. Certa noite, após sair de uma festa na casa de uns amigos, ele foi encontrado por um grupo de caras que saíam espancando qualquer pessoa que vissem pela frente. A cada golpe sofrido na barriga, na face, no nariz e nas pernas, ele se dividia entre a dor e o arrependimento. Arrependimento de ter desejado morrer. Arrependimento de não ter valorizado a si próprio - ele não era tão loser como ele sempre julgava. Arrependimento de não ter dito o que pensava e sentia. Arrependimento de ter sido tão ausente, a começar de sua própria vida. As lágrimas saíam furtivamente e se misturavam com o sangue que saía do nariz e dos ferimentos na cara. Pouco a pouco, a respiração foi ficando cada vez mais difícil, e a visão, cada vez mais turva. Ele perdera os sentidos. Ele se perdera de vez de si.

TWENTY YEARS GONE

Posted: domingo, 22 de junho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , , ,
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Ainda era um pirralho de 5 anos que estava começando a entender o que era o futebol. Até então, esporte para mim se resumia a sair correndo sem rumo e dar de cara com paredes, o que deixava alguns "galos" na cabeça, além de chutar uma bola, mas sem direção, eira, nem beira. Fora isso, a minha vida se resumia a assistir desenhos, brincar de Lego e desenhar carrinhos de Fórmula 1 em folhas brancas de sulfite (Freud explica?)
Pois bem, conto isso porque há vinte anos (exatos? Não sei) tive a primeira lembrança pra valer relacionada ao futebol. Brasil x Camarões, EUA, 1994. Até então, ainda tentava entender qual era a graça em ver um bando de retardado correndo atrás de uma bola - nem preciso dizer que não manjava quem era o "cara de preto", né? Tudo o que consigo é de me lembrar de flashes da minha família indo assistir àquele jogo na casa de um amigo do meu pai. Das poucas lembranças, de um bando de negão contra uns caras de amarelo, que ganharam a minha simpatia - confesso que queria ser que nem eles, o que era uma doce ilusão. Eu, magrelo e mirrado, parecido com Roger Milla? Don't fuck with me.
Sei que aquele jogo foi 3 x 0, mas me lembro de um gol do Romário, frente a frente com o goleiro - aquele que tem a narração "Vamos, garoto! Vamos, garoto!", com a assinatura do Galvão Bueno, que não calava a boca desde aquela época. Lembro também da gritaria a cada gol e da expressão empolgada do seo Amaurizão, meu pai e mentor.
Mais do que ter a primeira lembrança de fato sobre futebol, fui fisgado pela dicotomia entre paixão e raiva que essa porra de esporte proporciona. Também entendi toda a mística que envolve uma Copa do Mundo - leia-se o que rola em campo. Há não muito exatos vinte anos, parte importante do meu caráter e de quem eu sou havia sido moldada. O futebol começou a existir para mim naquele mesmo dia.
É isso.

SETE ANOS

Posted: quarta-feira, 11 de junho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: ,
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Sete anos. Pois é, Vó. Não dá para dizer que parece ter sido ontem, pois já faz tempo. Mas tudo ainda está nítido na memória e dói fundo na alma como se tivesse acontecido horas atrás.

Estava preocupado demais com o seu estado de saúde, que havia piorado dias antes, mas estava me recusando a pensar no pior e só pensava em buscá-la no ponto de ônibus, como havia sido anos e anos antes. Não via a hora de voltar a ouvir os causos do interior que a senhora contava, cuja narrativa era única e envolvente. Não via a hora de voltar a me permitir voltar a ser um guri - OK, sempre tentei ser um pirralho metido a adulto, mas sem entender o porquê, com a senhora eu conseguia tentar não parecer adulto. Coisa que nem com os meus pais - olha, nem com o pai e com a mãe - eu conseguia.

Lembro-me bem daquele dia, para o bem e para o mal. Mal havia acabado de fazer uma prova na faculdade e saí voando para o estágio e, ao ligar o celular no caminho - sempre fui bem desligado, devo admitir -, vi umas cinquenta mil ligações perdidas de casa. Era a mãe tentando avisar que o pessoal do RH do estágio queria falar sobre um processo de efetivação do qual eu estava participando. Agora consigo entender nitidamente por que ela estava uma pilha de nervos: porra, a mãe dela estava entre a vida e a morte. Parêntese feito. Pouco tempo depois, já no meu canto do castigo no estágio, soube que o dia seguinte seria o meu primeiro dia como profissional registrado na CLT e o caralho a quatro. Eu deveria, mas não conseguia comemorar. Só conseguia pensar na senhora. Por sorte, o dia pareceu ter passado voando e, com ele, saí voando pra ir ao curso técnico, no qual só aparecia nas aulas por causa do TCC.

Durante a aula, o celular - sempre esse aparelho - tocou de novo. Outra ligação de casa. Tudo o que queria imaginar era numa bronca da minha mãe, que, além de estar emocionalmente em frangalhos por causa da senhora, ainda estava ansiosa graças ao descabeçado do seu filho. Não, na verdade era o seo Amaurizão, com a voz abalada, mas ainda tentando manter a compostura. "Filho, vem para a casa. A sua avó...". Não foi preciso terminar a frase e, com isso, tive de me preparar para o pior, por mais que eu me recusasse. Turbilhões de pensamentos na cabeça, que já estava muito mais perturbada do que é diariamente. Um choro tímido, mas impossível de conter dentro do terminal de ônibus, onde não havia ninguém por sorte. Odeio chorar em público. Aliás, odeio chorar. Mas estava impossível não ir às lágrimas naquele momento, mesmo tendo falhado ao brecar as duas lágrimas furtivas que ainda escaparam.

Em casa, o fim da crônica anunciada. "Jú, a vó morreu". Essas quatro palavras, puta que o pariu, atravessaram a minha cabeça como um canhão atravessa um navio. Não conseguia chorar. Não conseguia pensar. Não conseguia existir. Só conseguia sentir desespero. Nada mais.

Não vou entrar em detalhes sobre o dia seguinte por motivos de: a) nunca lidei bem com a morte, mesmo entendendo um pouco sobre espiritismo e afins; b) a lembrança até hoje dói. Tudo o que me permito pensar é na multidão que foi lhe dar o último adeus - a senhora era querida demais, velhinha - e na minha mãe. Não pude me permitir estar vulnerável, pois tinha de compartilhar o peso de segurar as pontas com o meu pai. Era um peso absurdo demais para ele, ainda mais ao ver a esposa (claro!) emocionalmente destruída e outros dois filhos, um adolescente e outra criança de tudo, além da tristeza.

Sete dias depois. Deitado, após a missa de sétimo dia, quando ainda era católico - hoje eu sou o que se chama de à toa, reconheço -, chorei. Chorei escondido, mas sem ser contido. Chorei de desespero. Pude me permitir a chorar.

Sete anos. Não deveria pensar em ti com luto, mas sim pensar nos milhões de momentos felizes que tivemos juntos. Não sou mais o mesmo garoto idealista de sete anos atrás, mas alguém lutando para não ser um cara medíocre. Sete anos e não posso ouvir "Wish You Were Here", do Pink Floyd, que me lembro de ti. Sete anos e muita coisa mudou. Só uma coisa não mudou de lá para cá: a senhora faz muita falta. Onde quer que esteja, espero que esteja bem e com a certeza de que a senhora fez, sim, a diferença por aqui.

FALTA DE CORES

Posted: segunda-feira, 2 de junho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , , ,
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Sua vida era movida a desilusões. Muitas, mesmo. A começar pela desilusão consigo próprio. Ele não era sequer sombra de quem ele gostaria de ser e de quem ele esperava ser muitos anos atrás. Em resumo, o garoto idealista que ele fora na adolescência e no começo da juventude havia sido transformado em um adulto medíocre e burocrático. Exatamente o que ele abominou a vida inteira.

Desilusões amorosas? Ele as tinha em quantidade expressiva, até. Dá para colocar na conta uma ex-namorada por quem ele era louco, mas que o abandonou porque ele era um adolescente "certinho demais"; a melhor amiga que, sabe-se porque caralhos foi ficar a fim dela, mas o seu estilo inseguro e blasé o fez se afastar dela; uma date bem mais velha do que ele e que queria mandar em sua vida, o que o fez se afastar dela; e outros pequenos casos que o foram corroendo aos poucos. Isso sem contar a sua última namorada, cujo relacionamento era perfeito, mas havia um porém: ele achava-se muito aquém do que ele julgava ser a pessoa ideal para ela. Nem precisa dizer que ele inventou um pretexto qualquer para se afastar dela, pois em sua mente confusa, essa seria a chance de ela ter uma vida foda e ser a estrela no céu de outra pessoa.

Pouco a pouco, essas experiências, aliadas a outras desilusões, seja em relação aos amigos, trabalho ou até mesmo ao deparar com a crueldade humana, o tornaram um cara frio e indiferente. Ele se tornara alguém incapaz de retribuir qualquer tipo de afeto. Se alguém o elogiasse, mesmo que fossem o melhor amigo ou a mãe, ele perguntava o que eles queriam, como se todos só se aproximassem dele por interesse. Ele era incapaz de amar e de mostrar qualquer tipo de empatia com qualquer pessoa. Sua vida e relação com qualquer pessoa haviam sido transformadas num grande Muro de Berlim.

Se algum encontro terminava bem, ele apenas dizia que ligaria no dia seguinte - o que nunca acontecia. Se visse algum mendigo na rua ou algo que julgasse injusto, limitava-se a dizer que o mundo era uma merda. Se visse algo que causasse comoção pública ou revolta, tudo o que fazia era pensar que o ser humano era um lixo. Ele não sentia prazer em nada. Ele perdera o prazer em dar aulas, justamente o que ele sempre quisera fazer. Ver os amigos que ainda restavam havia se tornado algo burocrático e era muito raro vê-lo esboçar um sorriso, por mais blasé que fosse. Ele perdera o prazer em tudo, até mesmo em tocar guitarra, que era o seu hobby desde que se entendia por gente, e fazer sexo. Em resumo: viver lhe dava sono.

Tudo estava tão estranho e vazio que nem beber ou tomar antidepressivos o ajudava mais. Havia momentos em que ele queria chorar, mas as lágrimas insistiam em não aparecer. Ele queria desabafar com qualquer pessoa, mas o seu orgulho o bloqueava. Ele queria escrever, mas as palavras travavam. Ele cogitava até mesmo desistir da vida. 

Certo dia, enquanto dirigia de casa para a escola em que dava aulas, tudo parecia insosso e sem vida como nos últimos tempos. Do nada, um carro em alta velocidade avançou o semáforo e acertou em cheio o seu. Ele sentia dores no corpo inteiro. O gosto amargo de sangue começou a tomar conta de sua boca. Aquilo o fez voltar a sentir, mesmo que fosse desespero. Ele percebera que não queria morrer. Percebeu que queria dizer o "Eu te amo" entalado na garganta. Percebeu que queria rir com os amigos. Percebeu que queria voltar a ver cores. Em meio a esse turbilhão de pensamentos, ele começou a chorar. A chorar de pânico e desespero. Ele nem se deu conta que, enquanto era resgatado, um paramédico lhe deu injeção de morfina, para aliviar a dor. Ele foi sentindo a visão ficar turva e escurecer aos poucos. Ele perdeu os sentidos.

ANÔNIMO E COLETIVO

Posted: domingo, 1 de junho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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Noite fria e deprimente quinta-feira. O clima traduzia bem o meu estado de espírito naquele momento. Faltava motivação para sair da cama, trabalhar, comer e até mesmo rir. Para transar? Porra, estava passando por uma puta crise no casamento. A minha mulher não perdia a primeira chance de jogar na minha cara que eu estava casado com o meu emprego e que ela era apenas a minha amante. E estava ficando de saco cheio daquilo tudo. Olha, se não fosse o meu filho, eu teria ligado o foda-se para tudo e saído para comprar um cigarro, que nem naquela velha lenda do cara que o fazia e passava anos desaparecido. Detalhe: não sou fumante.

Naquela noite fria e deprimente de quinta-feira, eu decidi frequentar uma reunião do Alcoólicos Anônimos. OK, cometi uns abusos aqui e ali, mas nada que me prejudicasse profissionalmente ou que me colocasse numa roubada naquelas. Mas não era por eu estar com medo de flertar com o alcoolismo. Pretendia fazer um documentário sobre impactos sociais da doença, essas porras, e como pensa um alcoólatra. Tá, admito: tenho alguns parentes que passaram por alguns perrengues por causa do alcoolismo, mas não queria começar o processo pela minha família, pois isso ia envolver a parte sentimental e queria ser o menos emocional que eu pudesse na produção do documentário.

Como de praxe, cheguei atrasado à reunião - acho que até mesmo no meu velório eu me atrasaria, mas essa é outra história. No trajeto, eu imaginava que a reunião seria naquele esquema de cadeiras dispostas em formato circular, com todos falando sobre suas experiências, mais ou menos na cena do "Clube da Luta" em que um começa a chorar abraçado ao outro e o personagem de Edward Norton encontra Marla Singer

A primeira história que ouvi teve o efeito de uma porrada na boca do estômago. Um cara confessou contar quanto tempo de vida ele ainda teria, pois ele havia desistido de viver. E a frase final, algo como "Cara, estou com 53 anos e o que mais quero é viver" ficou martelando na minha cabeça por um bom tempo. E as outras histórias eram bem diferentes em princípio, como a de um cara que passava noites bebendo e cheirando, até o dia em que foi perseguido de carro por policiais que o confundiram com um assaltante; a de um empresário que perdeu tudo, percebeu-se um dia tomando álcool Zulu com suco e pensou em virar andarilho só para sumir do mapa; e a do típico trabalhador que, após se aposentar, passou a beber além da conta. No entanto, todas tinham algo em comum: eles perderam o rumo da vida

Tudo o que foi dito me deixou atordoado. Estava até com dúvidas se seguia adiante com o meu projeto insano sobre alcoolismo. Aquelas expressões que poderiam ser interpretadas como "quero me libertar e poder viver o resto dos meus dias em paz" traziam um misto de esperança no ser humano e desespero. Os olhares baixos, carregados de culpa e tristeza, estavam me devastando. O anúncio do intervalo foi um alívio: saí correndo dali. Queria respirar. Queria chorar. Queria sumir. Mas, apesar de tudo, queria viver.

A crise no casamento veio à tona com tudo novamente na minha cabeça. Os problemas do trabalho também. Aquele clima triste e cinzento daquela quinta-feira me deixaram deprimido ao extremo. Parei num pub e pedi uma cerveja. Precisava parar de pensar por alguns instantes sobre o que fazer da vida. Precisava esquecer de mim.

HORA E VEZ

Posted: segunda-feira, 12 de maio de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , , ,
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Aquele era mais um dia como qualquer outro. Estava caindo de casa antes do Sol raiar para pegar no batente. Ainda dava pra ouvir umas galinhas cantando, se pá. Estava subindo a ladeira pra tomar o busão e, depois, tomar o trem lotado pra bater o ponto na firma. Aquele dia não prometia nada de anormal. No máximo, parar no boteco após o expediente pra tomar a breja de cada dia e passar a noite com a patroa e a minha filha.

O dia seria comum, mas uns caras subiram correndo e gritando "Pega ladrão!". Saí correndo também pra dar uns sopapos no filho da puta. Sempre achei que bandido bom era bandido morto. A minha mãe sempre dizia isso. Desde a escola ouvia a mesma coisa. No trampo, no bar e em casa, todo mundo concordava com esse lance aí. Sempre aplaudia quando via um filho da puta desses ser jogado no camburão. Vi um dia desses aí aquela moça da TV dizer que dava pra entender por que uns caras aí amarraram no poste um neguinho ladrão e concordei com tudo. Sempre fui desses que achava que quem estivesse com dó de bandidinho deveria levá-lo pra casa.

Só que o ladrão da história era eu. Logo eu, que desde moleque ralava pra ajudar a minha mãe a pagar as contas. Logo eu, que madrugava e trampava de Sol a Sol pra não deixar faltar nada em casa. Logo eu, que sempre paguei os meus impostos e me considerava um cidadão de bem. Mas eu virei bandido pra alguns caras e fodeu. Nem sei o que foi roubado e o que aconteceu para eles acharem que eu era o bandido. Tentei correr, mas não deu em nada: um cara chegou com tudo e deu uma voadora nas minhas costas. Parecia que eu havia sido rachado ao meio e aquela dor quase me fez perder os sentidos. Só deu tempo de levar uns dois pontapés na cara pra apagar geral.

Acordei apenas três dias depois disso tudo aí - o médico me disse que fiquei sedado, pois fiquei com um puta coágulo no cérebro. Só de tentar abrir a boca, doía tudo. Os caras destroçaram o meu maxilar, quebraram o meu nariz e quase deslocaram uma das minhas retinas. o meu mundo caiu de vez quando percebi que não mexia nada da cintura pra baixo. "Maldita voadora!", pensava enquanto o médico dizia que a medula estava fodida e eu estava paralítico. Eu não conseguia conter as lágrimas de dor, raiva e desgosto, que caíam no meu rosto.

Agora terei de refazer a minha vida. Não sei por mais quanto tempo vou depender da minha mulher pra ir ao banheiro. Nunca mais vou poder bater a minha bola na quadra da quebrada. Nunca mais vou poder trampar na fábrica - sim, eu curtia o que fazia lá. Vou ter de aturar a cara feia do pessoal no busão, pois eles não têm saco pra esperar o elevador pra cadeirantes funcionar - eu também não tinha e achava que esses caras aí atrasavam o lado de todo o mundo. Só que, agora, eu sou esses caras aí.

Alguns malucos foderam a minha vida em nome de justiça. Só que justiça com violência não é justiça. Só deu pra perceber isso quando perdi o meu direito de ir e vir porque uns caras quiseram fazer justiça com as próprias mãos e decidiram brincar de Deus. Dizem que a vida é injusta. Talvez ela seja, sim. Mas decidir quem merece viver ou morrer é ainda mais injusto.

CARTA AO PAI

Posted: segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014 by ajeugenio in Marcadores:
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Obrigado por estar sempre ao meu lado e por me apoiar, mesmo a distância. Obrigado por ter me dado o seu nome - vá lá, "Amauri Alfredo" é uma combinação pouco feliz, não dá para negar, mas não é nada perto de quem você é. Obrigado por me fazer rir quando tenho alguma crise depressiva e tento, em vão, conter as lágrimas. Obrigado por todas as vezes em que me encorajou e foi até mesmo duro comigo quando duvidei de mim mesmo, tal qual um garoto com medo de cair novamente da bicicleta. Obrigado por todos os esporros, lições de moral e afins - apesar de ser incapaz de demonstrar isto, serei eternamente grato por elas. Obrigado por me proteger de mim mesmo. Obrigado por compartilhar comigo os seus medos - porra, apesar de quase ter desfeito aquela imagem de pai super-herói que ainda tenho de ti, isso me faz perceber que você é humano, demasiado humano. E essa é uma prova de confiança inestimável, da qual duvido até hoje se tenho moral para merecê-la. 

Desculpe-me por todas as vezes em que fui motivo de preocupação, em especial por eu ser um pouco autodestrutivo e por temer que eu seja algoz de mim mesmo. Desculpe-me por todas as vezes em que, mesmo você estando equivocado sobre um aspecto aqui e ali, fui ainda mais sem-noção e ignorei tudo o que você disse. Desculpe-me por oscilar entre segundos de arrogância e dias inteiros de baixa autoestima intensa. Desculpe-me por ser incapaz de pedir ajuda ou um ombro amigo, mesmo que você perceba que é exatamente isso o que preciso. Desculpe-me por tentar parecer ser intransponível e autossuficiente, e por me isolar em meu mundo pequeno - velho, isso tudo é apenas uma armadura pra não ter de deparar com o meu medo de fracassar.

Como já disseram por aí, é você quem aparece quando olho no espelho. É em você em quem penso quando tenho de tomar alguma decisão que julgo ser incapaz de fazê-lo, ou quando me vejo em uma roubada e tento procurar uma saída. 

Acima de tudo, obrigado por ser a minha espinha dorsal, por estar 24 horas por dia mental e emocionalmente ao meu lado. E obrigado por não ter desistido de mim. Acima de qualquer coisa, obrigado por ser meu pai.