HORA E VEZ

Posted: segunda-feira, 12 de maio de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , , ,
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Aquele era mais um dia como qualquer outro. Estava caindo de casa antes do Sol raiar para pegar no batente. Ainda dava pra ouvir umas galinhas cantando, se pá. Estava subindo a ladeira pra tomar o busão e, depois, tomar o trem lotado pra bater o ponto na firma. Aquele dia não prometia nada de anormal. No máximo, parar no boteco após o expediente pra tomar a breja de cada dia e passar a noite com a patroa e a minha filha.

O dia seria comum, mas uns caras subiram correndo e gritando "Pega ladrão!". Saí correndo também pra dar uns sopapos no filho da puta. Sempre achei que bandido bom era bandido morto. A minha mãe sempre dizia isso. Desde a escola ouvia a mesma coisa. No trampo, no bar e em casa, todo mundo concordava com esse lance aí. Sempre aplaudia quando via um filho da puta desses ser jogado no camburão. Vi um dia desses aí aquela moça da TV dizer que dava pra entender por que uns caras aí amarraram no poste um neguinho ladrão e concordei com tudo. Sempre fui desses que achava que quem estivesse com dó de bandidinho deveria levá-lo pra casa.

Só que o ladrão da história era eu. Logo eu, que desde moleque ralava pra ajudar a minha mãe a pagar as contas. Logo eu, que madrugava e trampava de Sol a Sol pra não deixar faltar nada em casa. Logo eu, que sempre paguei os meus impostos e me considerava um cidadão de bem. Mas eu virei bandido pra alguns caras e fodeu. Nem sei o que foi roubado e o que aconteceu para eles acharem que eu era o bandido. Tentei correr, mas não deu em nada: um cara chegou com tudo e deu uma voadora nas minhas costas. Parecia que eu havia sido rachado ao meio e aquela dor quase me fez perder os sentidos. Só deu tempo de levar uns dois pontapés na cara pra apagar geral.

Acordei apenas três dias depois disso tudo aí - o médico me disse que fiquei sedado, pois fiquei com um puta coágulo no cérebro. Só de tentar abrir a boca, doía tudo. Os caras destroçaram o meu maxilar, quebraram o meu nariz e quase deslocaram uma das minhas retinas. o meu mundo caiu de vez quando percebi que não mexia nada da cintura pra baixo. "Maldita voadora!", pensava enquanto o médico dizia que a medula estava fodida e eu estava paralítico. Eu não conseguia conter as lágrimas de dor, raiva e desgosto, que caíam no meu rosto.

Agora terei de refazer a minha vida. Não sei por mais quanto tempo vou depender da minha mulher pra ir ao banheiro. Nunca mais vou poder bater a minha bola na quadra da quebrada. Nunca mais vou poder trampar na fábrica - sim, eu curtia o que fazia lá. Vou ter de aturar a cara feia do pessoal no busão, pois eles não têm saco pra esperar o elevador pra cadeirantes funcionar - eu também não tinha e achava que esses caras aí atrasavam o lado de todo o mundo. Só que, agora, eu sou esses caras aí.

Alguns malucos foderam a minha vida em nome de justiça. Só que justiça com violência não é justiça. Só deu pra perceber isso quando perdi o meu direito de ir e vir porque uns caras quiseram fazer justiça com as próprias mãos e decidiram brincar de Deus. Dizem que a vida é injusta. Talvez ela seja, sim. Mas decidir quem merece viver ou morrer é ainda mais injusto.

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