RESSACA MORAL

Posted: terça-feira, 29 de julho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , ,
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O Sol invadia o quarto como um assaltante invade uma loja: sem cerimônia e violentamente. O efeito que causava nos meus olhos era devastador: era como se um clarão de luz estourasse à minha frente. A minha cabeça martelava e causava tontura, tal qual em um marinheiro à deriva em alto mar. Eu só sabia que estava em casa porque a minha cama e o meu travesseiro são inconfundíveis. Eu não me lembrava sobre como a noite anterior havia sido. Ou melhor: não me lembro de nada do que fiz, menos ainda de quem encontrei. Havia ficado com alguém? Havia transado? Não me lembrava. Só sabia que não tinha mais físico e idade para beber descontroladamente. "Que merda, Júnior! Você não é mais um moleque de 18 anos, porra!". Só conseguia pensar nisso naqueles minutos iniciais de uma tarde de domingo.

Conforme as perguntas se juntavam ao turbilhão na minha cabeça e a deixavam ainda mais dolorida, fui olhar no relógio do celular. 15h10. "Legal! Mais um domingo perdido!", pensava. Desde que Beth, a minha ex, havia ido embora, a minha vida havia virado esta coisa: trabalhar que nem condenado durante a semana, fazer frilas à noite e beber aos fins de semana como se não houvesse amanhã. No fundo, eu queria voltar a ter uma vida regrada, encontrar alguém e fazer o que qualquer casal faz, como ir ao cinema, andar sem pressa pelo Ibirapuera e deitar na grama, ver o pôr-do-Sol em alguma praça, andar na ciclofaixa e rir da cara de cansaço dela, essas porras. Mas não: eu estava sem rumo. A minha vida estava em rota de colisão com algo que eu nem fazia ideia do que era.

Pouco a pouco, algumas peças começavam a surgir e a me ajudar a montar o quebra-cabeça dos meus pensamentos. Havia perfume feminino e vestígios de sexo na minha cama. O perfume era o mesmo da Beth. "Não é possível. Eu não faria isso. Eu não seria tão burro." É, alguém havia dormido ali. Mas quem? "Estava muito louco, mesmo. Como consegui abrir a porta? Como trouxe uma desconhecida para cá? Por que não a levei ao Savoy?" Perguntas, perguntas e mais perguntas. Todas sem resposta. Parecia até o resumo da minha vida: uma grande confusão sem explicação ou razão alguma para existir.

O chão parecia mover sob os meus pés conforme eu tentava andar pelo apê. A ressaca ainda estava braba, cara. Havia uma toalha molhada no banheiro, mas eu só havia tomado banho na noite anterior. "Ela tomou banho por aqui, certeza". Aroma de café no ar. "Porra, mas que liberdade é essa? Só a minha mãe tem carta branca pra mexer em tudo em casa, por mais que ela recrimine - com razão - o meu estilo de vida...". Ela, não importando quem, devia saber que estava de ressaca e tentou fazer a boa ação do dia. Devo agradecer: o café estava no ponto, bem do jeito que eu gosto. Mas só a minha mãe e a Beth sabiam de como eu gostava de tomá-lo. "Será? Não, eu não seria tão burro. Será possível!?" Um misto de raiva e desespero começou a martelar a minha cabeça, que doía um pouco menos, mas ainda doía. Sim, eu ainda amava Beth, por mais orgulhoso que eu fosse e relutasse em revê-la. Tudo o que a minha alma queria era fazer as pazes com ela e tê-la de novo em minha vida, mas a minha mente, essa rocha em forma de cérebro, emperrava tudo.

Andando um pouco mais pela casa, vi o jornal sobre a mesa, com as revistas de música e cinema organizadas como há tempos não estavam. Sobre a última edição, uma folha de sulfite. Temi que fosse um bilhete dela. Minhas pernas congelaram por alguns instantes, mas consegui recobrá-las e andei até lá. Ao pegar a folha, a respiração ficou ofegante. "É a letra dela. Puta que o pariu! Puta que o pariu! Puta que o pariu!" Só conseguia pensar nisso. Após recobrar o fôlego, tomei coragem e tive de segurar as lágrimas.

"Júnior,

Você continua o mesmo inconsequente que conheci. Inseguro, mas inconsequente. Você estava bebendo sozinho no bar e te vi lá. Você estava alterado, mas ainda não estava bêbado pra valer. Ficamos e viemos pra cá. Você pediu pra eu ficar e pra voltarmos. Mas quero ouvir isso de ti quando estiver sóbrio e deixar de ser tão orgulhoso. Sei que ainda me ama - bêbados não mentem. Só peço o seguinte: não tenha medo de deixar a emoção falar mais alto e cuide melhor de ti. A casa estava uma bagunça só. Aposto que a sua mente também está. Ainda te amo, mas você precisa se amar.

Cuide bem de você.

Beth."

Porra, aquela foi uma puta porrada no estômago. Quis chorar, mas as lágrimas não caíam. Queria gritar, mas a voz insistia em travar. Tentei ligar para ela, mas os dedos travaram sobre o teclado do smartphone. Saí para achar algum restaurante aberto. Saí para fugir de mim.

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