EM RUÍNAS

Posted: domingo, 6 de julho de 2014 by ajeugenio in Marcadores: , , ,
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Era uma casa abandonada, dessas com arquitetura bem antiga, localizada em um bairro periférico que foi tomado - ou melhor: devastado - pela especulação imobiliária. Os tijolos descobertos, que à primeira vista podem transmitir a impressão de desleixo ou até mesmo de que as paredes irão cair, davam um charme algo cool ao local. Por outro lado, as folhas caídas de árvores e páginas amareladas de jornais, que estavam acumuladas no quintal, davam ares tristes à casa. As paredes descascadas por dentro e o vazio em cada cômodo causavam a sensação de se estar em uma locação de filme de guerra. Foi essa a sensação que José teve ao desbravá-la pela última vez.

Aquela casa, que naquele dia parecia ser uma sombra pálida do que fora um dia, foi onde José cresceu. Conforme ele a explorava, vários momentos vinham à tona: as vezes em que saía com o pai, seja num Opala cinza ou de bicicleta, para passeios sempre imprevisíveis e agradáveis; quando jogava futebol no quintal com o irmão; as festas de aniversário que seus pais organizavam e às quais a molecada do bairro comparecia; os ensaios no quarto com a banda de punk rock da qual fez parte... À medida em que ele entrava em cada cômodo, era como se ele visse hologramas de si próprio, quando mais jovem, e de seus pais andando pela a que fora um dia a sua casa. Até mesmo situações que lhe pareciam pavorosas, como as broncas e castigos que recebia dos pais por atitudes como sujar a parede com bola de futebol; ficar acordado até tarde vendo filmes "de sacanagem", como dizia a sua mãe; ou por causa da bagunça no quarto, arrancaram risadas e lágrimas simultâneas de José. Sim, suas emoções estavam à flor da pele e dicotômicas, transitando entre a saudade e a tristeza.

Ao entrar na cozinha, o baque veio mais forte: onde outrora aconteciam diversos jantares em família, nos quais cada um contava como havia sido o dia, ora entre risadas, ora entre um quê de indignação, o silêncio e a melancolia davam o tom. Eis que ele decidiu vencer os fantasmas em sua mente e decidiu entrar no quarto. Sim, o local onde ele se refugiava. O local onde estudava e tomou gosto pela leitura. O local onde ele ouviu pela primeira vez "Smells Like Teen Spirit" e se tornou viciado em Nirvana, assim como aquele mesmo quarto foi o lugar onde ele se trancou para chorar copiosamente quando soube da morte de Kurt Cobain. Idem para diversas vezes quando ele ouvia um "não" de alguma guria ou após discutir com a sua namoradinha à época. O local onde ele aprendeu a viver na linha tênue entre a felicidade e o desespero. Instintiva e involuntariamente, ele se sentou em posição fetal junto à parede daquele mesmo quarto e começou a chorar. Chorar de tristeza, de emoção e de indignação. Ele não queria acreditar que aquele quarto, aquela cozinha, aquela sala de estar, enfim, a sua casa seria derrubada para a construção de mais um prédio - "mais um prédio, porra?!", indagava, entre as lágrimas que ele não conseguia conter.

José estava incrédulo. Ele não queria acreditar que aquele lugar, onde ele queria morar com a esposa antes de se casar, iria virar ruína. José pensou em trazer o filho para mostrar a casa onde ele tivera alguns dos momentos mais alegres de sua vida, mas ele temia que Juninho, típico garoto de condomínio e representante da geração Playstation, não desse a mínima para aquilo.

Mesmo contra a vontade, José teve de reunir forças para sair daquela casa, onde estaria pela última vez. Já fora dali, ele olhou, tentando conter as lágrimas, aquele local. Ele não queria acreditar que uma construtora a derrubaria. Ele não queria aceitar a ideia de que suas lembranças e emoções virariam pó. Ele não queria aceitar que suas raízes, tão fortemente fincadas ali, seriam arrancadas. Ele não queria aceitar que o lucro e o concreto haviam vencido o lado humano. José não queria dar o braço a torcer, mas ele havia acabado de perder o resto de fé no ser humano.

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