ENSAIO SOBRE A INFÂMIA (PARTE II)

Posted: quarta-feira, 3 de agosto de 2011 by Mau Júnior in Marcadores: , , , , ,
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Aquela deusa da sétima arte, para o meu alívio, não era poser, daquelas que fingiam gostar de determinada obra obra só para pagar de intelectual, e foi simpática comigo, até – estranhei, porque até mesmo os meus pais me achavam um porre, mas não me deixei abalar. O nome dela, saberia pouco depois, era Lia, e era estudante de Sociologia, para completar. Pela primeira vez na vida adulta – amores platônicos da adolescência não contam -, eu não estava atraído por uma mulher somente pela parte pura e simplesmente sexual. Estranhamente, me sentia bem perto dela, somente pelo fato de estar perto dela.

Em pouco tempo de conversa – eu supunha, pelo menos -, eu me sentia hipnotizado por ela. Não conseguia prestar atenção ao que ela dizia, somente em seus movimentos labiais; logo, o mundo girava em slow motion. Pelo pouco o que pude “reter”, ela era aficionada pelos filmes de Almodóvar, Truffaut e, acredite, em cinema iraniano. Bisonhamente, ela rira ruidosamente da minha cara, e achou meio estranho um estudante de Cinema não ter assistido, até então, a nenhum filme feito por aquelas bandas. Para minha sorte, sair pela tangente era uma de minhas especialidades: apesar de ser um loser incorrigível, eu manjava bem até sobre Bollywood e, também, sobre a indústria cinematográfica nigeriana – sabia que o mercado local é o terceiro maior do mundo? Soube um dia desses, numa daquelas aulas nas quais somente eu consigo interessar-me. É, acho que aquele foi o meu golpe de misericórdia: eu havia furado o Muro de Berlim erguido anteriormente pela própria.

Aquela foi, de longe, a melhor transa de toda a minha vida. Pela primeira vez, eu havia vivenciado uma relação na qual houve entrega mútua e todos aqueles clichês sobre os quais me recuso até o fim a dizer. Aquilo virou o meu soma, a minha dose moral de endorfina – além da física, é claro -; e a presença dela, o meu oxigênio. Foram noites insones e dias improdutivos no trabalho, que fizeram o meu tio perder o último fio de paciência e me demitir, até começarmos a namorar. Parceiro, a parada estava séria ao ponto de eu ter aceito colocar um anel na mão direita. Logo eu, que achava o uso desse famigerado objeto prateado uma instituição pequeno-burguesa e hipócrita. Eu estava na lama moral, mesmo. Ainda assim, feliz. O amor nos deixa idiota, só pode.

O meu cotidiano estava dividido entre os roteiros de curtas-metragens para a faculdade – agora entendo o mestre Vinícius de Moraes, em se tratando de amor e de inspiração criativa – e os programas lindamente mais bregas ao lado da Lia. Não interessava se fossem tardes cinematográficas com sessões extras in loco, se você me entende; fondue seguido de fodas épicas; ou passeios de bicicleta no Ibirapuera, eu me sentia como se Edith Piaf tivesse composto “La vie em rose” sob medida para a nossa relação.

Apesar de tudo, alguma coisa me inquietava. Essa “alguma coisa” era o fato de tudo dar certo. Desde que me entendo por gente, sempre acontecia alguma merda na minha vida. Para variar, isso teria de acontecer naquela fase da minha vida (justo naquele momento, porra?), e em dose dupla. O meu histórico boêmio iria foder a minha vida um dia, segundo os meus pais e amigos um pouco menos loucos – e olha que havia sido um adolescente “certinho” -, e foi exatamente isso o que aconteceu. Ironicamente, o feitiço virou contra o feiticeiro, graças a uma noite na qual esqueci de pegar preservativos em casa e não havia nenhuma drogaria 24 horas por perto, uma semana antes de ter conhecido a Lia. Sim, a bomba da paternidade havia estourado no meu colo. 


(Continua)

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