INCONSTÂNCIA COTIDIANA (PARTE I)

Posted: domingo, 18 de setembro de 2011 by Mau Júnior in Marcadores: , , , ,
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João era daqueles caras que eram legais com todos ao seu redor, exceto consigo próprio. Na proporção inversa, a única pessoa com quem ele era filho da puta era com ele mesmo, enquanto que o fato de ele ter de ser ríspido com o próprio irmão, por exemplo, o fazia ter pesadelos intermináveis - além do peso na consciência que o fazia ficar à beira de dar um mergulho no Tietê.

No seu emprego, o de repórter foca, ele era bom, até, mas tinha tendência para ficar disperso de suas atividades. Não por incompetência ou por ser DDA - ele tinha algumas características, mas não todas para caracterizá-lo como tal. Seu problema era desestabilizar-se ao ver que qualquer coisa fugia ao seu controle, mesmo as mais triviais, e sentir-se impotente em relação a tal, como se faltasse uma peça para completar o seu quebra-cabeça, e ele nunca fosse encontrá-la. Além de irritar-se com o fato de seus pais passarem noites insones por conta de seu comportamento instável, ora arrogante, ora depressivo, por achar que eles tinham coisas muito mais importantes com as quais se preocuparem ao invés dele, é claro.

Outra coisa que o incomodava era o fato de tudo dar certo em sua vida, pois, desde que ele se entendia por gente, alguma merda sempre acontecia no dia a dia. De tão habituado e resignado a entrar em roubadas sucessivas a cada cinco minutos, um período de calmaria – entenda-se de quase tudo terminar bem – o deixava desconfiado que uma avalanche de merda o encontraria no quarteirão seguinte. Mesmo que ele não o quisesse admitir, essa incerteza o deixava com cagaço eterno.

Enfim, João tinha o raro dom de complicar até mesmo o que parecia ser impossível fazê-lo. Tanto o medo de fracassar em qualquer coisa o quanto sobre o que todos poderiam pensar sobre ele tornavam sua autoconfiança extremamente vulnerável – para não dizer efêmera, mesmo. Logo, recorrer ao álcool era a sua saída mais recorrente para fugir de si próprio e, inconscientemente, ser alguém que ele não era – abusado, ousado, cheio de si. Exatamente o que ele não era no dia a dia, e era como se ele fosse o Jekyll/Hyde pós-moderno. “O Loser e o Libertino”,no caso. Logo, qualquer outra pessoa entenderia a preocupação de seus pais e de seus poucos amigos em relação a ele, por conta de seu comportamento potencialmente autodestrutivo.

De tanto ir a um boteco relativamente próximo de sua casa, daqueles foleiros e frequentados por pseudo-intelectuais de quinta categoria, ele já era amigo até dos garçons, e falava sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis com eles. Desde a queda da taxa Selic às fotos da Scarlett Johansson, por exemplo.

Obviamente, os assuntos da moda são os que mais rendem opiniões – de vertentes mais variadas, normalmente –, e resultam em discussões acaloradas. Desta vez, uma dessas discussões envolveu João, e o motivo foi a Scarlett. Ele conseguia polemizar somente quando não sabia a opinião sobre de ninguém sobre qualquer assunto, e foi o caso nesse dia: ao comentar com o garçom que os seios da atriz eram os mais bonitos de Hollywood, uma dessas mulheres com o estereótipo “estudante de Antropologia da USP", aparentemente horrorizada com o que acabara de ouvir, desconsiderou o estado um tanto ébrio de nosso anti-herói [que de herói não tem porra nenhuma, diga-se de passagem] e dirigiu-se a ele, ao chamá-lo de “machistazinho de merda”.

Ainda sem saber de qual birosca aquela minazinha havia surgido, sua reação foi dizer que isso – uma certa parte da anatomia perfeita de Scarlett, no caso – estava evidente até mesmo no enquadramento de câmeras de “Vicky Cristina Barcelona”, de Woody Allen, além de citar uma série de baboseiras pseudo-cult que nem valem a pena ser mencionadas. Ironicamente, o que tinha tudo para transformar-se em uma discussão ideológico-sexual acabou em uma conversa sobre cinema, desde as cores de Almodóvar e sua preferência por Penélope Cruz a até sobre a fotografia e direcionamento de “Elefante”, aquele filme de Gus Van Sant sobre os ataques em Columbine, no já longínquo 1999.

Meia hora depois, numa mesa um tanto isolada, João tentava decifrar ao menos um pouco a personalidade daquele ser enigmático que tentou destruir sua reputação, que já não valia porra nenhuma, além de tentar refazer seu filme; enquanto ela tentava descobrir o que se passava pela cabeça daquela que tentava impressioná-la, mas positivamente, agora. “Prazer, Ana, estudante de Sociologia. O que o aprendiz do Jece Valadão faz da vida?”. Aquela pergunta, por algum motivo, fez João achar que aquela noite seria interessante, e decidiu dar uma chance ao imponderável e mergulhar de cabeça nela.


(Continua)

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