INCONSTÂNCIA COTIDIANA (PARTE II)

Posted: domingo, 2 de outubro de 2011 by Mau Júnior in Marcadores: , , , , ,
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E aquela noite prometia ser interessante, mesmo. João teve vontade de dizer que o "aprendiz de Jece Valadão" era pós-graduado e adepto da pornochanchada, além de ter o próprio ator, além do mito Paulo César Pereio, como mentores. Mas a cota de comentários sarcásticos havia sido preenchida pouco antes, por motivos óbvios. Restou-lhe dizer nada que não fosse novidade: ele era um foca de merda, motivo de piadas e de preocupação entre seus amigos graças aos seus porres homéricos, além de ser roteirista frustrado de curtas-metragens. Enfim, um merda da sociedade.

João esperava um bocejo colossal vindo de Ana, até porque a minha vida é um tédio só, uma merda - tanto que uma puta, certa vez, havia me dito que ela, sua vida, era um puta (!) tédio -, mas ela mostrou-se interessada, sabe-se lá o motivo. Talvez porque ela já havia tomado umas e outras, e já estava com o seu nível de julgamento e de estabelecer critérios comprometido. Por algum motivo um pouco mais bizarro, ela estava interessada nos pequenos causos (ou melhor, de roubadas) em que João esteve envolvido. Como uma coletiva em que, bem na hora na qual ele faria uma pergunta, teve um ataque de espirros seguido de falta de ar - além de tudo, o mais vexaminoso naquela história foi que tudo foi causado pelo misto de rinite com medo de falar em público. Mas isso não vem ao caso.

Na mesma proporção, ele mostrou-se interessado pacas no que Ana dizia, especialmente sobre o comportamento do indivíduo em sociedade e afins. Sem contar que ambos riam muito alto quando ela contou  a clássica associação do regime comunista aos Smurfs - sem contar a piada que ela mesma fez sobre Smurfette ser a única mulher numa comunidade socialista, que causou certo estranhamento em João, mas, dado o seu estado etílico, não deu muita importância a esse detalhe. Além de todas as pseudo-teorias sobre o pensamento doentio de Lars Von Trier - ou Lars Von Treta, como ambos chegaram a esse nome, por consenso.

A vibe entre os dois ficou intensa, ao ponto de ambos terem sido enxotados do bar, pelo risco de rolar atentado violento ao pudor a qualquer momento - tanto João quanto Ana estavam numa pegada tão louca que transariam no banheiro, caso não estivesse sujo. A solução acabou sendo ir mesmo a um motel meio foleiro, mas que cabia no bolso de ambos ("Um jornalista falido ficar com uma estudante de Sociologia só poderia dar em merda", pensava João). Para foder a porra toda, ambos foram a pé, mas, como dizia o poeta, "tá no inferno, abraça o capeta!".

Não se pegarem no saguão do motel foi um exercício de autocontrole sobre-humano para os dois. Quiçá, tão grande quanto colocar uma garrafa de vodka na frente de Boris Yeltsin, ex-presidente da URSS e notório bêbado. Nem precisa dizer que, ao chegarem no quarto, os dois bateram o recorde mundial ao tirarem toda  a roupa. Nem será preciso entrar em detalhes sobre preliminares e afins (até porque este não é um conto erótico, capice?).

Tudo fluía muito bem. João e Ana estava na mesma vibe, na mesma frequência. Mas, quando estavam prestes a chegar em outra dimensão, uma interrupção abrupta rolou do nada. Sem motivo aparente, Ana começou a sentir-se culpada por estar ali, com um cara que conhecera pouco antes, de uma das maneiras mais bizarras possíveis. Culpada por ser uma "intelectual poser", segundo a própria; culpada por ter agido de maneira irresponsável. Mesmo sabendo que havia sido algo mútuo, João começou a sentir peso na consciência, mesmo com evidências mais do que fortes de que estava com uma pessoa, no mínimo, problemática. Qualquer tipo de clima tinha sumido do mapa, e a noite, até então insana, acabou sendo uma espécie de divã.

Quanto mais ele a ouvia falar, sobre outros relacionamentos que ela vivera e suas crises existenciais, além da revolta contra o mundo - o sistema hedonista-capitalista, no caso -, mais João pagava de psicanalista, e pensava. Pensava que aquilo era exatamente o que ele sentia, mas que resolvia por meio da leitura e de porres "juvenis". Também pensava em por que caralhos aquáticos ele sempre tornava-se um ímã de mulheres problemáticas, tão problemáticas quanto ele.

Como a grana de ambos era curta e a conta no motel perigava ficar cara demais, o jeito foi continuar a conversa num dos poucos bares abertos por 24h. Na verdade, o que ele mais queria era dar o fora e fugir daquela louca, mas, por compaixão (ou por, inconscientemente, ele estar atraído por ela), continuou a ouvi-la noite afora. Depois de muito mimimi e de choradeira inacabável, os dois chegaram ao consenso de que era melhor cada um ir para o seu rumo. Subjetivamente contrariado, João perdeu uma grande oportunidade para dar o telefone errado, de propósito, e forneceu o número pessoal, além de seu e-mail (ele não queria admitir, mas queria vê-la novamente).

Ao voltar para casa, ele não conseguia parar de pensar na pergunta "O que o aprendiz de Jece Valadão faz da vida?", na loucura, no clímax - e na broxada - que aquela noite fora. "Tenho o raro dom de foder a minha vida, que já é complicada", ele pensou. "Sorte não precisar trabalhar hoje. Mais um dia antes de voltar para a rotina de merda", refletia, ao ritmo de marteladas em seu subconsciente. A vida, por mais louca que fosse, continuava, afinal.

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