Ponto de virada (parte II)

Posted: segunda-feira, 5 de agosto de 2013 by ajeugenio in
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Para Roberto, aquela que tinha tudo para ser mais uma noite melancólica teve um ponto de virada digno de filmes de Tarantino. Em questão de pouco mais de uma hora, os pints de Guinness solitários foram substituídos por um bate-papo despretensioso e para lá de agradável com Diana.

O foda era, mesmo a tendo conhecido naquela noite, ele sentia-se à vontade com ela como há tempos não se sentia com a própria esposa. Roberto nunca a havia traído, mas a relação estava tão inviável que, para ele, ficar com outra mulher naquela noite não seria traição. Isso era tão emblemático que até mesmo a vida sexual, a única coisa que deu certo entre eles por anos, era um sacrifício. Isso quando eles transavam, é claro.

Logo, ele estava pouco se fodendo para o que restava de sua família e, na mesma proporção, era todo ouvidos - e todo o resto - para Diana. A sensação de que eles tinham muito em comum não era por acaso: ela também era dava aulas para turma de comunicação. Mas, ao contrário de Roberto, Diana era professora de multimeios em uma universidade pública. "Eles são chatos demais, mas ao menos dá para tentar conversar com eles", desabafava.

- Então, por que você continua a dar aulas para eles, já que são "chatos demais"? - perguntou Roberto, com o ar provocador que lhe fez colecionar alguns - ou melhor: vários - desafetos ao longo da vida.
- Nunca parei para pensar. E você, mesmo achando os seus alunos um bando de burgueses intratáveis, por que continua? - retrucou Diana, na mesma moeda.
- Nunca parei para pensar também. Talvez para ter sobre o que reclamar e uma justificativa para beber - respondeu Roberto, transitando entre o sarcástico e o blasé.

Entre provocações, tiradas sarcásticas e um pouco de ar blasé, Diana e Roberto iam ficando cada vez mais próximos e envolvidos. Claro, a química entre eles estava fluindo, se bem que para ele qualquer diálogo seria melhor do que as discussões com a (ex?) esposa. Daí, o inevitável aconteceu: eles começaram a se beijar ali mesmo, enquanto o clima ia ficando mais e mais intenso, cada vez mais próximo ao clímax.

Dali, o destino óbvio foi um motel - por sinal, aonde Roberto havia levado sua esposa (em quem ele já pensava como ex) quando eles estavam começando a namorar e aonde eles foram quando a relação ia muito bem, obrigado. Eles tiveram de se segurar para não transar no carro, o que já foi difícil, mas as mãos (nada) bobas já não podiam ser controladas no corredor. Ele teve de manter o mínimo de calma para não comê-la ali mesmo, mas faltou pouco para não resistir e deixar o seu lado visceral entrar em cena antes mesmo de girar a chave da fechadura. Bastou fechar a porta para aproveitar todos os espaços e posições que eram possíveis. Aquela havia sido sua transa mais selvagem em anos. Foi como se ele redescobrisse o cara sedutor e dominador que ele fora um dia.

Horas depois, quando já tomavam banho - juntos - para irem embora, Roberto fez a revelação (ou melhor: cometeu a gafe) da noite: "Há tempos não tinha uma noite tão incrível ao ponto de não dar a mínima para a cara de revolta da minha espos... Digo, ex-esposa", disse, como se estivesse afirmando a si próprio que ele já estava separado. Diana, que até então estava em êxtase e mais do que interessada em revê-lo, não conseguiu conter a decepção e a raiva e começou a xingá-lo por todos os insultos possíveis e imagináveis. "Não quero ouvir suas desculpas esfarrapadas! SAIA DA MINHA FRENTE!", gritava, conforme sua voz (não, não eram os gemidos) ecoava pelos corredores.

Roberto ainda tentou argumentar e falar à altura, mas pouco adiantaram as tentativas. Mesmo abatido pelo desfecho da noite - "Pior que gostei pra caralho dela", pensava enquanto abotoava a camisa e ia ao carro -, ele estava determinado a tomar uma atitude. Naquele mesmo dia, ele ligaria ao advogado, um velho conhecido, e daria entrada na papelada do divórcio.

Ponto de virada (parte I)

Posted: domingo, 4 de agosto de 2013 by ajeugenio in
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Mais uma noite como qualquer outra. Mais uma vez aliviado por sair do ambiente burguês e hostil que era a universidade onde Roberto dava aulas de teoria da comunicação. Ele não aguentava mais aquele bando de jovens presunçosos e arrogantes. "Eles até podem ser filhos de empresários e pessoas influentes, mas nem fodendo eles serão bons profissionais", sempre confidenciava aos amigos. Mas eles eram os menores dos problemas: a convivência com o reitor da instituição estava inviável - um nunca suportou o outro, mas a última discussão foi a pá de cal na relação até então apenas pouco amigável - e sua vida pessoal estava de mal a pior. O casamento estava por um fio - ele não suportava mais a (ainda?) esposa, por quem um dia foi louco, por causa do desgaste natural que acontece com o passar do tempo. De quebra, até mesmo a relação com o filho estava desgastada, mas isso era natural se fosse levar em conta que lidar com adolescentes é difícil - "pra caralho", sempre completava mentalmente.

Aquela noite, em particular, estava mais melancólica do que todas as anteriores juntas. Voltar para casa estava fora de cogitação. Ir à happy hour com os outros professores do curso de jornalismo idem. Vá lá, ele se dava bem com eles, mas aquela noite seria para beber, reorganizar as ideias e, quem sabe, encontrar uma saída para a merda emocional na qual ele estava. Nem beber com os amigos estava em seus planos. O bar do qual ele era cliente de longa data foi o destino natural.

Entre um pint e outro de Guinness, além dos cigarros tragados, ele tentava entender o que aconteceu com o jovem idealista e sonhador que ele fora um dia. Claro, ele também tentava relembrar sua vida, momento a momento, para entender o que deu errado: por que ele deixou de amar a pessoa por quem ele ficou a fim desde o dia em que a viu pela primeira vez, o que deu na sua cabeça para largar o emprego dos sonhos após um bate-boca com o chefe de jornalismo da emissora na qual ele havia penado para entrar, e por que ele não conseguia reconhecer a si próprio no espelho. As respostas a todas essas perguntas pareciam inexistir, mas a angústia e os pints consumidos estavam aumentando. Ele já estava esperando a hora de Joãozinho, garçom conhecido de longa data, dizer: "Doutor [sic], pega leve! Chama o táxi e busca o carro amanhã. Guardo ele [sic] se o senhor quiser". Sim, isso aconteceu por outras vezes. Nada como uma ou outra regalia às quais só os clientes antigos têm direito. E Roberto ria ao pensar nisso.

Enquanto estava perdido nos próprios pensamentos, ele nem reparou que uma mulher havia se sentado ao na cadeira ao lado e assim foi por algum tempo, até que ele ouviu: "Não sei por que está rindo sozinho, mas deve ser algo engraçado". Ele ficou sem palavras e não conseguia responder nada de imediato. O sorriso, que destacava seus belos dentes, assim como o olhar penetrante, o deixaram hipnotizado. "Nada, nada. Só uma besteira na qual pensei, nada mais", disse Roberto, meio sem jeito. "Não me lembro de ter te visto aqui antes. Qual o seu nome?", perguntou ao mostrar-se à vontade como há tempos não se sentia. "Diana, muito prazer. E o seu?".

Há tempos ele não se sentia tão aberto ao acaso como naquela noite, sabe-se lá o motivo - nem ele sabia. Tudo o que Roberto pensava era deixar a noite rolar. E ele já sabia como esquecer de todos os problemas, pelo menos por algumas horas.

Unnamed feeling

Posted: quinta-feira, 1 de agosto de 2013 by ajeugenio in
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Ele era um cara difícil para lidar. Seu comportamento aparentava dar sinais de calma, mas era apenas irritação controlada. Pouco importava a situação: ele parecia sempre controlar os próprios atos, pensamentos, reações e palavras. Era como se ele tentasse deixar o lado médico falar mais alto o tempo todo e enjaular o lado monstro. Era como se ele tivesse medo do dark side ofuscar a luz, por assim dizer. Ou como se ele tentasse se ver refletido nos olhos dos outros e não visse ninguém ali.

No trabalho? Ele respirava fundo a cada vez que o chefe jogava vários relatórios em sua mesa, como se analisá-los fosse a única coisa que ele fazia na porra da sua vida. "Quero tudo finalizado até as 19h, Carlos!", bradava o chefe, típico tiozinho de 50 anos meio careca, barrigudo e com ares de tecnocrata (eles ainda existem?). Ele tinha vontade de voar no pescoço dele, dar uns bons socos no nariz dele e sair dali à Michael Douglas em "Um Dia de Fúria". Mas o medo de imaginar o que todos pensariam sobre ele o fazia engolir aquilo a seco, como se fosse uma dose de cachaça que desce rasgando, e seguir com a sua vidinha de merda. Claro, aquilo tudo viraria tema para mais uma sessão de terapia, à qual, entre idas e vindas, ele ia há uns três anos, desde que havia se divorciado.

Entre os amigos? Todos eram unânimes. "Carlinhos, você precisa relaxar. Nesse ritmo você vai conseguir uma ponte de safena, cara!", ele chegou a ouvir uma vez do seu melhor amigo. Por mais que ele tentasse relaxar, algo sempre o fazia estar distante de tudo ou de todos, como se ele não se encaixasse ali. Ou melhor: como se ele não se encaixasse em lugar nenhum, sendo outsider entre os próprios outsiders. Até mesmo com a própria família. O que o fazia se sentir assim? Nem ele sabia. Tudo foi considerado: traumas de infância, algum relacionamento mal resolvido na adolescência, até mesmo fobia social. Mesmo assim, nada parecia fazer sentido.

Namoradas, dates e afins? Dizer que ele não conseguia se entregar a nenhuma delas chega a ser redundante. Ele parecia sempre esperar pelo fim, o que realmente era inevitável graças à maneira como ele encarava tudo. Todos os seus relacionamentos podem ser resumidos no bilhete que sua ex-esposa deixou ao partir e nunca mais voltar: "Essa sua mania de colocar um muro entre você e o mundo, só para não se machucar, ainda vai te fazer viver sozinho. Aguentei o que pude e cheguei no meu limite". Até hoje aquilo lhe dilacerava a alma. Até dava para tentar esquecer entre uma dose e outra de uísque, mas tudo voltava à tona quando ele acordava ao lado de outra mulher que não fosse sua ex. Foda é que ele fazia tudo em repeat eterno, como se estivesse punindo a si próprio por ter perdido a mulher a quem amava.

Já em família, o convívio era dos mais conturbados. Para cada encontro agradável, outros dois terminavam com algum tipo de discussão, por mais que o motivo fosse o mais tolo e comum possível. Ele não conseguia se perdoar e encostar tranquilamente a cabeça no travesseiro por ser intratável logo com quem ele mais amava. Sua mãe ainda o entendia - toda mãe entende o filho, por mais canalha que seja -, mas os conflitos com o pai eram frequentes. Logo com ele, a quem ele sempre admirou. A merda toda era que, justamente por ser diferente ao extremo de seu velho, a nada boa e velha raiva de si próprio sempre vinham à tona. Era ainda mais foda que isso tudo era externado da pior maneira possível e, por mais contraditório que parecesse, aquilo tudo fosse a mola propulsora para conversas acaloradas virem à tona. Por mais que ele tentasse, tudo sempre terminava mal. Ele sempre teve o raro dom de estragar tudo, de foder a própria vida e magoar àqueles quem ele mais amava. Isso era um peso que ele não conseguia mais segurar.

Tudo isso passava pela sua cabeça enquanto dava entrada na emergência de um hospital, ao sentir fortes dores no peito e falta de ar, enquanto era entubado. Os pensamentos ficavam cada vez mais confusos e lentos com o passar do tempo, e cessaram conforme a visão ficava mais e mais turva e escura.